Membro de honra
Usuário desde: 24/12/2006
Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3650
|
 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO - cap. II (Alemtagus)
Quem passava pela ruela estreita de calçamento de pedras pé de moleque, comuns nas cidadezinhas interioranas brasileiras, reparava numa única janela da casa estilo colonial de cinco pequenos cômodos, entreaberta, quase uma fresta, abertura regulada apenas por uma correntezinha presa às duas bandas de madeira carcomida pelo tempo. Ainda assim, se conseguia captar um mínimo de ar, claridade, e a gente; a intimidade daquele eremita citadino contemporâneo. Cotovelos sobre a mesa, uma das mãos apoiando a cabeça e a outra como se também pensativa, burilando a pena sobre o papel almaço contendo já algumas anotações, versos ou pensamentos soltos para talvez se juntar as tantas outras amassadas em bolotas quais jaziam espalhadas pelo chão, pois foram jogadas a esmo em direção à lixeirinha de canto da escrivaninha e errado dado o estágio adiantado duma miopia já que ele recusava o uso dos óculos. Avistava-se, nas duas paredes laterais, prateleiras apinhadas até o alto teto ripado com livros e rolete de papéis de mau aspeto, sujos ou amarelados, bolorentos, empoeirados e com sinais visíveis de terem sido recentemente atacados por traças e cupins, contrastando com a saleta de leitura lúgubre que também servia de ambiente para as pequenas refeições quando assim as fizesse, desleixado contumaz. Lá fora, desviando o olhar dos que por ali se passeavam, um pequeno engraxate, de ar arisco, manhoso, tentava imaginar o que ia para lá daquela velha janela e que segredos se guardavam por lá... tesouros, seguramente. Na distração nem dava pelos encontrões dos despreocupados que percorriam a rua numa pressa estonteante e quase desumana. O Sol, implacável, que não se importava com quem ali andasse, parecia ter uma consideração especial pelo miúdo, abraçando-o com suavidade paternal. Tudo parecia um quadro pintado em movimento. Ao lado da ruela estendia-se a boulevard- chamavam-lhe os ditos da alta sociedade - ladeada de plátanos e alguns chorões, podados quase de mês a mês, que mantinham intacta a sombra sobre a calçada portuguesa, ainda do século anterior, e os pequenos lagos com repuxos de água fresca.
|