
A Neve e o Amor
Publicado em 07/08/2023 18:57:00 | Tópico: Lêdo Ivo
| A Neve e o Amor
Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve. Sempre estive à sua espera. Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos e vi a neve caindo na estepe siberiana e no casaco roto de Fédor Dostoievski. Amo a neve porque ela não separa o dia da noite nem afasta o céu das aflições da terra. Une o que está separado: os passos dos homens condenados ao gelo escurecido e os suspiros de amor que se perdem no ar. É necessário ter um ouvido muito afiado para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem, ou o estertor de um pássaro. Não se deve esperar a neve como se espera o amor. São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria que não queima como o fogo do amor. Para ver o amor os nossos olhos não bastam, nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações que batem na escuridão com o mesmo rumor da neve caindo nas estepes e nos telhados das cabanas escuras e no casaco roto de Fédor Dostoievski. Para ver o amor, nada basta. E tanto o frio do inverno como o calor escaldante o afastam de nós, de nossos braços abertos e de nossos corações atormentados. Fiel à minha infância, prefiro ver a neve que une o céu e a terra, a noite e o dia, a ser a presa indefesa do amor, o amor que não é branco nem puro nem frio como a neve.
|
|