
Poema(s) da Cabra
Publicado em 24/02/2008 12:00:00 | Tópico: João Cabral de Melo Neto
| Nas margens do Mediterrâneo não se vê um palmo de terra que a terra tivesse esquecido de fazer converter em pedra.
Nas margens do Mediterrâneo Não se vê um palmo de pedra que a pedra tivesse esquecido de ocupar com sua fera.
Ali, onde nenhuma linha pode lembrar, porque mais doce, o que até chega a parecer suave serra de uma foice,
não se vê um palmo de terra por mais pedra ou fera que seja, que a cabra não tenha ocupado com sua planta fibrosa e negra.
1
A cabra é negra. Mas seu negro não é o negro do ébano douto (que é quase azul) ou o negro rico do jacarandá (mais bem roxo).
O negro da cabra é o negro do preto, do pobre, do pouco. Negro da poeira, que é cinzento. Negro da ferrugem, que é fosco.
Negro do feio, às vezes branco. Ou o negro do pardo, que é pardo. disso que não chega a ter cor ou perdeu toda cor no gasto.
É o negro da segunda classe. Do inferior (que é sempre opaco). Disso que não pode ter cor porque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturno o negro da cabra é solar. Não é o da cabra o negro noite. É o negro de sol. Luminar.
Será o negro do queimado mais que o negro da escuridão. Negra é do sol que acumulou. É o negro mais bem do carvão.
Não é o negro do macabro. Negro funeral. Nem do luto. Tampouco é o negro do mistério, de braços cruzados, eunuco.
É mesmo o negro do carvão. O negro da hulha. Do coque. Negro que pode haver na pólvora: negro de vida, não de morte.
3
O negro da cabra é o negro da natureza dela cabra. Mesmo dessa que não é negra, como a do Moxotó, que é clara.
O negro é o duro que há no fundo da cabra. De seu natural. Tal no fundo da terra há pedra, no fundo da pedra, metal.
O negro é o duro que há no fundo da natureza sem orvalho que é a da cabra, esse animal sem folhas, só raiz e talo,
que é a da cabra, esse animal de alma-caroço, de alma córnea, sem moelas, úmidos, lábios, pão sem miolo, apenas côdea.
4
Quem já encontrou uma cabra que tivesse ritmos domésticos? O grosso derrame do porco, da vaca, do sono e de tédio?
Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade? Tal o cão, o gato, o cavalo, diletos do homem e da arte?
A cabra guarda todo o arisco, rebelde, do animal selvagem, viva demais que é para ser animal dos de luxo ou pajem.
Viva demais para não ser, quando colaboracionista, o reduzido irredutível, o inconformado conformista.
5
A cabra é o melhor instrumento de verrumar a terra magra. Por dentro da serra e da seca não chega onde chega a cabra.
Se a serra é terra, a cabra é pedra. Se a serra é pedra, é pedernal. Sua boca é sempre mais dura que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio, a insolência do que mastiga. Por isso o homem vive da cabra mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra e não é capaz do seu braço desconfia sempre da cabra: diz que tem parte com o Diabo.
6
Não é pelo vício da pedra, por preferir a pedra à folha. É que a cabra é expulsa do verde, trancada do lado de fora.
A cabra é trancada por dentro. Condenada à caatinga seca. Liberta, no vasto sem nada, proibida, na verdura estreita.
Leva no pescoço uma canga que a impede de furar as cercas. Leva os muros do próprio cárcere: prisioneira e carcereira.
Liberdade de fome e sede da ambulante prisioneira. Não é que ela busque o difícil: é que a sabem capaz de pedra.
7
A vida da cabra não deixa lazer para ser fina ou lírica (tal o urubu, que em doces linhas voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente, sem os êxtases das decidas. Viver para a cabra não é re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar a vida sob a superfície, que a cabra, proibida de folhas, tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira, de mãos ásperas, realista. Eis porque, mesmo ruminando, não é jamais contemplativa.
8
O núcleo de cabra é visível por debaixo de muitas coisas. Com a natureza da cabra outras aprendem sua crosta.
Um núcleo de cabra é visível em certos atributos roucos que têm as coisas obrigadas a fazer de seu corpo couro.
A fazer de seu couro sola, a armar-se em couraças, escamas: como se dá com certas coisas e muitas condições humanas.
Os jumentos são animais que muito aprenderam com a cabra. O nordestino, convivendo-a, fez-se de sua mesma casta.
9
O núcleo de cabra é visível debaixo do homem do Nordeste. Da cabra lhe vem o escarpado e o estofo nervudo que o enche.
Se adivinha o núcleo de cabra no jeito de existir, Cardozo, que reponta sob seu gesto como esqueleto sob o corpo.
E é outra ossatura mais forte que o esqueleto comum, de todos; debaixo do próprio esqueleto, no fundo centro de seus ossos.
A cabra deu ao nordestino esse esqueleto mais de dentro: o aço do osso, que resiste quando o osso perde seu cimento.
*
O Mediterrâneo é mar clássico, com águas de mármore azul. Em nada me lembra das águas sem marca do rio Pajeú.
As ondas do Mediterrâneo estão no mármore traçadas. Nos rios do Sertão, se existe, a água corre despenteada.
As margens do Mediterrâneo parecem deserto balcão. Deserto, mas de terras nobres não da piçarra do Sertão.
Mas não minto o Mediterrâneo nem sua atmosfera maior descrevendo-lhe as cabras negras em termos da do Moxotó.
Texto extraído do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 254.
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