
Tragédia no lar
Publicado em 05/10/2007 12:57:26 | Tópico: Castro Alves
| Na Senzala, úmida, estreita, Brilha a chama da candeia, No sapé se esgueira o vento. E a luz da fogueira ateia.
Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição. E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se nas palhas do telhado Ruge o vento do sertão.
Se o canto pára um momento, Chora a criança imprudente ... Mas continua a cantiga ... E ri sem ver o tormento Daquele amargo cantar. Ai! triste, que enxugas rindo Os prantos que vão caindo Do fundo, materno olhar, E nas mãozinhas brilhantes Agitas como diamantes Os prantos do seu pensar ...
E voz como um soluço lacerante Continua a cantar:
"Eu sou como a garça triste "Que mora à beira do rio, "As orvalhadas da noite "Me fazem tremer de frio.
"Me fazem tremer de frio "Como os juncos da lagoa; "Feliz da araponga errante "Que é livre, que livre voa.
"Que é livre, que livre voa "Para as bandas do seu ninho, "E nas braúnas à tarde "Canta longe do caminho.
"Canta longe do caminho. "Por onde o vaqueiro trilha, "Se quer descansar as asas "Tem a palmeira, a baunilha.
"Tem a palmeira, a baunilha, "Tem o brejo, a lavadeira, "Tem as campinas, as flores, "Tem a relva, a trepadeira,
"Tem a relva, a trepadeira, "Todas têm os seus amores, "Eu não tenho mãe nem filhos, "Nem irmão, nem lar, nem flores".
A cantiga cessou. . . Vinha da estrada A trote largo, linda cavalhada De estranho viajor, Na porta da fazenda eles paravam, Das mulas boleadas apeavam E batiam na porta do senhor.
Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas, Sorrisos sensuais, sinistro olhar, Os bigodes retorcidos, O cigarro a fumegar, O rebenque prateado Do pulso dependurado, Largas chilenas luzidas, Que vão tinindo no chão, E as garruchas embebidas No bordado cinturão.
A porta da fazenda foi aberta; Entraram no salão.
Por que tremes mulher? A noite é calma, Um bulício remoto agita a palma Do vasto coqueiral. Tem pérolas o rio, a noite lumes, A mata sombras, o sertão perfumes, Murmúrio o bananal.
Por que tremes, mulher? Que estranho crime, Que remorso cruel assim te oprime E te curva a cerviz? O que nas dobras do vestido ocultas? É um roubo talvez que aí sepultas? É seu filho ... Infeliz! ...
Ser mãe é um crime, ter um filho - roubo! Amá-lo uma loucura! Alma de lodo, Para ti - não há luz. Tens a noite no corpo, a noite na alma, Pedra que a humanidade pisa calma, — Cristo que verga à cruz!
Na hipérbole do ousado cataclisma Um dia Deus morreu... fuzila um prisma Do Calvário ao Tabor! Viu-se então de Palmira os pétreos ossos, De Babel o cadáver de destroços Mais lívidos de horror.
Era o relampejar da liberdade Nas nuvens do chorar da humanidade, Ou sarça do Sinai, — Relâmpagos que ferem de desmaios... Revoluções, vós deles sois os raios, Escravos, esperai! ...
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Leitor, se não tens desprezo De vir descer às senzalas, Trocar tapetes e salas Por um alcouce cruel, Que o teu vestido bordado Vem comigo, mas ... cuidado ... Não fique no chão manchado, No chão do imundo bordel.
Não venhas tu que achas triste Às vezes a própria festa. Tu, grande, que nunca ouviste Senão gemidos da orquestra Por que despertar tu'alma, Em sedas adormecida, Esta excrescência da vida Que ocultas com tanto esmero? E o coração - tredo lodo, Fezes d'ânfora doirada Negra serpe, que enraivada, Morde a cauda, morde o dorso E sangra às vezes piedade, E sangra às vezes remorso?...
Não venham esses que negam A esmola ao leproso, ao pobre. A luva branca do nobre Oh! senhores, não mancheis... Os pés lá pisam em lama, Porém as frontes são puras Mas vós nas faces impuras Tendes lodo, e pus nos pés.
Porém vós, que no lixo do oceano A pérola de luz ides buscar, Mergulhadores deste pego insano Da sociedade, deste tredo mar. Vinde ver como rasgam-se as entranhas De uma raça de novos Prometeus, Ai! vamos ver guilhotinadas almas Da senzala nos vivos mausoléus.
— Escrava, dá-me teu filho! Senhores, ide-lo ver: É forte, de uma raça bem provada, Havemos tudo fazer.
Assim dizia o fazendeiro, rindo, E agitava o chicote... A mãe que ouvia Imóvel, pasma, doida, sem razão! À Virgem Santa pedia Com prantos por oração; E os olhos no ar erguia Que a voz não podia, não.
— Dá-me teu filho! repetiu fremente o senhor, de sobr'olho carregado. — Impossível!... — Que dizes, miserável?! — Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme... Inda há pouco o embalei, pobre inocente, Que nem sequer pressente Que ides... — Sim, que o vou vender! — Vender?!. . . Vender meu filho?!
Senhor, por piedade, não Vós sois bom antes do peito Me arranqueis o coração! Por piedade, matai-me! Oh! É impossível Que me roubem da vida o único bem! Apenas sabe rir é tão pequeno! Inda não sabe me chamar? Também Senhor, vós tendes filhos... quem não tem?
Se alguém quisesse os vender Havíeis muito chorar Havíeis muito gemer, Diríeis a rir — Perdão?! Deixai meu filho... arrancai-me Antes a alma e o coração!
— Cala-te miserável! Meus senhores, O escravo podeis ver ...
E a mãe em pranto aos pés dos mercadores Atirou-se a gemer. — Senhores! basta a desgraça De não ter pátria nem lar, - De ter honra e ser vendida De ter alma e nunca amar!
Deixai à noite que chora Que espere ao menos a aurora, Ao ramo seco uma flor; Deixai o pássaro ao ninho, Deixai à mãe o filhinho, Deixai à desgraça o amor.
Meu filho é-me a sombra amiga Neste deserto cruel!... Flor de inocência e candura. Favo de amor e de mel!
Seu riso é minha alvorada, Sua lágrima doirada Minha estrela, minha luz! É da vida o único brilho Meu filho! é mais... é meu filho Deixai-mo em nome da Cruz!...
Porém nada comove homens de pedra, Sepulcros onde é morto o coração. A criança do berço ei-los arrancam Que os bracinhos estende e chora em vão!
Mudou-se a cena. Já vistes Bramir na mata o jaguar, E no furor desmedido Saltar, raivando atrevido. O ramo, o tronco estalar, Morder os cães que o morderam... De vítima feita algoz, Em sangue e horror envolvido Terrível, bravo, feroz?
Assim a escrava da criança ao grito Destemida saltou, E a turba dos senhores aterrada Ante ela recuou.
— Nem mais um passo, cobardes! Nem mais um passo! ladrões! Se os outros roubam as bolsas, Vós roubais os corações! ...
Entram três negros possantes, Brilham punhais traiçoeiros... Rolam por terra os primeiros Da morte nas contorções.
Um momento depois a cavalgada Levava a trote largo pela estrada A criança a chorar. Na fazenda o azorrague então se ouvia E aos golpes - uma doida respondia Com frio gargalhar! ...
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