
Poema para grande orquestra parada – um silêncio bem alto
Publicado em 26/04/2014 16:36:41 | Tópico: Millôr Fernandes
| Você já amou uma mulher brilhante. Você já amou uma mulher formosa. Você já amou uma mulher Silenciosa? Que fala pouco. E bem, E baixo, Que não eleva a voz por raiva Nem má educação, Que anda com seus pés de seda Num mundo de algodão. Que não bate, fecha a porta, Como quem fecha o casaco De um filho (Ou abre um coração)? Que quando fala, se aproxima Ao alcance da mão Pra que a voz não se transforme em grito? E que absorve o mundo Sem re-percussão Num olhar de preguiça Num colchão de cortiça Como um mata-borrão?
Mas um dia ela sai Levando o seu silêncio De pingüim andando solitário em sua Antártica (ou Antártida), No eterno Gelo sobre gelo No infinito Branco sobre branco E dos cantos e recantos Onde habitou calada - entre oniausente - Brotam aos poucos, Os ruídos Pisados, Colocados embaixo do tapete Guardados na despensa Na gaveta mais funda De uma vida em comum. Os trincos falam, A cafeteira chia, A espreguiçadora range, O telefone toca, As louças tinem, O relógio bate, O cão ladra, O rádio mia, Toda a casa ressoa, reverbera e brada E a orquestra em pleno do teu dia-a-dia Ataca a algaravia Fabril Escondida no lençol de silêncio Com que ela partiu.
De Millôr Fernandes (1923-2012), em seu livro Poemas (1999)
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