
Cantares de sem nome e de partida
Publicado em 22/07/2007 13:50:00 | Tópico: Hilda Hilst
| Ó tirânico Amor, ó caso vário Que obrigas um querer que sempre seja De si contínuo e áspero adversário... Luiz Vaz de Camões
Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se; ela morreu jovem. John Webster
I
Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
II
E só me veja
No não merecimento das conquistas. De pé. Nas plataformas, nas escadas Ou através de umas janelas baças: Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias E só me veja no não merecimento e interdita: Papéis, valises, tomos, sobretudos
Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar de púrpura e desgosto, vendo através de mim navios e dorsos).
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes. Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis Machucadas de gozo.
E que jamais perceba o rocio da chama: Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
III
Isso de mim que anseia despedida (Para perpetuar o que está sendo) Não tem nome de amor. Nem é celeste Ou terreno. Isso de mim é marulhoso E tenro. Dançarino também. Isso de mim É novo: Como que come o que nada contém. A impossível oquidão de um ovo. Como se um tigre Reversivo, Veemente de seu avesso Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim. Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso Dançarino e novo, ter nome de ninguém E preferir ausência e desconforto Para guardar no eterno o coração do outro.
IV
E por que, também não doloso e penitente? Dolo pode ser punhal. E astúcia, logro. E isso sem nome, o despedir-se sempre Tem muito de sedução, armadilhas, minúcias Isso sem nome fere e faz feridas. Penitente e algoz: Como se só na morte abraçasses a vida.
É pomposo e pungente. Com ares de santidade Odores de cortesã, pode ser carmelita ou Catarina, ser menina ou malsã.
Penitente e doloso Pode ser o sumo de um instante. Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte. Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.
V
O Nunca Mais não é verdade. Há ilusões e assomos, há repentes De perpetuar a Duração. O Nunca Mais é só meia-verdade: Como se visses a ave entre a folhagem E ao mesmo tempo não. (E antevisses Contentamento e morte na paisagem).
O Nunca Mais é de planície e fendas. É de abismos e arroios. É de perpetuidade no que pensas efêmero E breve e pequenino No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
VI
Tem nome veemente. O Nunca mais tem fome. De formosura, desgosto, ri E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue. E perseguido és novo, devastado e outro. Pensas comicidade no que é breve: paixão? Há de se diluir. Molhaduras, lençóis E de fartar-se, O nojo. Mas não. Atado à tua própria envoltura Manchado de quimeras, passeias teu costado.
O Nunca Mais é a fera.
VII
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus. Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos Porque me fiz tanto de ressentimentos Que o melhor é partir. E te mandar escritos. Rios de rumor no peito: que te viram subir A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras Mas com a mulher, aquela, Que sempre diante dela me soube tão pequena. Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os. Perdi-me tanto em ti Que quando estou contigo não sou vista E quando estás comigo vêem aquela.
VIII
Aquela que não te pertence por mais queira (Porque ser pertencente É entregar a alma a uma Cara, a de áspide Escura e clara, negra e transparente), Ai! Saber-se pertencente é ter mais nada. É ter tudo também. É como ter o rio, aquele que deságua Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns. Aquela que não te pertence não tem corpo. Porque corpo é um conceito suposto de matéria E finito. E aquela é luz. E etérea.
Pertencente é não ter rosto. É ser amante De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. É vida e ferida ao mesmo tempo, "Esse" Que bem me sabe inteira pertencida.
IX
Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem. Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso. E pensas maravilha quando pensas anca Quando pensas virilha pensas gozo. Mas tudo mais falece quando pensas tardança E te despedes. E quando pensas breve Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha. E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas Luta, ascese, e as mós vão triturando Tua esmaltada garganta... Mesmo assim mesmo Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas... Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade A esperança.
X
Como se fosse verdade encantações, poemas Como se Aquele ouvisse arrebatado Teus cantares de louca, as cantigas da pena. Como se a cada noite de ti se despedisse Com colibris na boca. E candeias e frutos, como se fosses amante E estivesses de luto, e Ele, o Pai Te fizesse porisso adormecer... (Como se se apiedasse porque humana És apenas poeira, E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).
Como se fosse vão te amar e por isso perfeito. Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se. E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego O Seguidor disso sem nome? ISSO...
O amor e sua fome.
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