
Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio
Publicado em 02/11/2011 22:10:00 | Tópico: Hilda Hilst
| Canção I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
Canção II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.
Canção III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
Canção IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.
Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana
Não essa que te louva
A cada verso
Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.
Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E por isso talvez
Te aborreças de mim.
Canção V
Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada No entendimento de tua mãe e irmã.
A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado Porque é palavra de luta e despudor. E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor
Canção VI
Três luas Dionísio Não te vejo Três luas percorro a casa minha E entre o pátio e a figueira Converso e passeio com meus cães E fingindo altivez Digo a minha estrela, essa que é inteira prata dez mil sóis
Sírios pressagam que Ariana pode estar sozinha sem Dionísio Sem riqueza ou fama porque há dentro dela um som maior Amor que se alimenta de uma chama Movediça e lunada Mais luzente alta quando tu Dionísio não estás
Três luas, Dionísio, não te vejo Três luas percorro a casa minha E entre o pátio e a figueira Converso e passeio com meus cães E fingindo altivez Digo a minha estrela, essa que é inteira prata dez mil sóis
Três luas, Dionísio, não te vejo
Canção VII
É licito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem
Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloqüência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa,
Um ciúme venenoso e derradeiro.
Canção VIII
Se Clódia desprezou Catulo E teve Rufus, Quintius, Gelius, Inacius e Ravidus Tu podes muito bem, Dionísio, Ter mais cinco mulheres E desprezar Ariana Que é centelha e âncora E refrescar tuas noites Com teus amores breves. Ariana e Catulo, luxuriantes Pretendem eternidade, e a coisa breve A alma dos poetas não inflama. Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta Que seja sempre terra o que é celeste E que terrestre não seja o que é só terra.
Canção IX
Tenho meditado e sofrido Irmanada com esse corpo E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não me deram Esplêndida beleza Deram-me a garganta Esplandecida: palavra de ouro A canção imantada O sumarento gozo de cantar Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto. Tendo-me a mim Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas Ariana suspensa nas suas águas.
Canção X
Se todas as tuas noites fossem minhas Eu te daria, Dionísio, a cada dia Uma pequena caixa de palavras Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias Compor incendiado a tua canção E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus Eu te daria, Dionísio, a cada noite O meu tempo lunar, transfigurado e rubro E agudo se faria o gozo teu.
[Júbilo memória noviciado da paixão (1974)]
[in Poesia: 1959-1979/ Hilda hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]
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