
Como encarar a morte
Publicado em 24/09/2011 16:12:13 | Tópico: Carlos Drummond de Andrade
| COMO ENCARAR A MORTE
De longe
Quatro bem-te-vis levam nos bicos o batel de ouro e lápis-lazúli, e pousando-o sobre uma acácia cantam o canto costumeiro.
O barco lá fica banhado de brisa aveludada, açúcar, e os bem-te-vis, já esquecidos de perpassar, dormem no espaço.
A meia distância
Claridade infusa na sombra, treva implícita na claridade? Quem ousa dizer o que viu, se não viu a não ser em sonho?
Mas insones tornamos a vê-lo e um vago arrepio vara a mais íntima pele do homem. A superfície jaz tranqüila.
De lado
Sente-se já, não a figura, passos na areia, pés incertos, avançado e deixando ver um certo código de sandálias.
Salvo rosto ou contorno explícito, como saber que nos procura o viajante sem identidade? Algum ponto em nós se recusa.
De dentro
Agora não se esconde mais. Apresenta-se, corpo inteiro, se merece nome de corpo o gás de um estado indefinível.
Seu interior mostra-se aberto. Promete riquezas, prêmios, mas eis que falta curiosidade, e todo ferrão de desejo.
Sem vista
Singular, sentir não sentindo ou sentimento inexpresso de si mesmo, em vaso coberto de resina e lótus e sons.
Nem viajar nem estar quedo em lugar algum do mundo, só o não saber que afinal se sabe e, mais sabido, mais se ignora.
"Como Encarar a Morte" In Corpo - Record, 1984
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