
Canto III
Publicado em 31/05/2011 01:00:31 | Tópico: Jorge de Lima
| Invenções de Orfeu
Canto III
Poemas relativos
I
Caída a noite o mar se esvai, aquele monte desaba e cai silentemente.
Bronzes diluídos já não são vozes, seres na estrada nem são fantasmas, aves nos ramos inexistentes; tranças noturnas mais que impalpáveis, gatos nem gatos, nem os pés no ar, nem os silêncios.
O sono está. E um homem dorme.
II
Queres ler o que tão só se entrelê e o resto em ti está? Flor no ar sem umbela nem tua lapela; flor que sem nós há.
Subitamente olhas: nem lês nem desfolhas; folha, flor, tiveste-as.
E nem as tocaste: folha e flor. Tu - haste, elas reais, mas réstias.
III
qualquer voz alou-se muito desejada. Branco fosse o espaço e ela ardente cor.
Quis o espaço a voz a voz veio e ampliou-o.
Mas se não houvesse propriamente voz...
Vamos nós supô-los: dois sem seus sentidos.
Desejemos mesmo dois incompreensíveis.
Bom nos ecoarmos na voz recebida.
E o espaço esvaziado povoá-lo de vez.
Amá-los tão sem amada presença, só com o coração sem correspondência, só com a vocação do verso feliz.
IV
Numas noites chegamos à janela, e as mandíbulas do ar tanto nos roem, que os leitos rotos logo deliqüescem com os nossos corpos complacentemente.
Certos dias olhamos o sol claro; e a boca hiante das cores nos devora carnes e sangues, poeiras de costelas, que ficamos inúteis, sem matéria.
Essas bocas nos sugam noite e dia, vigiando dia e noite nossas vidas um minuto no espaço, menos que ai de chumbo soluçado nos silêncios, ou cal de fome longa, revelada, na noite igual ao dia, de tão gêmeos.
V
Agora o sem senso sorriso nos ares, minha alma perdida, os vales lá embaixo de minhas lonjuras de não existido, parado nos antes, nem sei de pecados, nem sei de mim mesmo, eu mesmo não sou nem nada me vê; ausentes palavras não soam no vácuo dos antes das coisas, das coisas sem nexo, nem fluidos. Só o Verbo chorando por mim.
VI
Agora, escutai-me que eu falo de mim; ouvi que sou eu, sou eu, eu em mim; tocai esses cravos já feitos pra mim, suores de sangue, pressuados sem poros verônica herdada. sem face do ser.
Embora; escutai-me, que eu falo com a voz inata que diz que a voz não é essa que fala por mim, talvez minha fala saída de ti.
VII
Alegria achareis neste poema como poema ilícito, como um corpo casual ou vão, como a memória dura e acídula, como um homem se conhece respirando, ou como quando se entristece sem causa ou se doente, ou se lavando sempre ou comparando-se às dimensões das coisas relativas; ou como sente os ombros de seu ser, transmitidos e opacos, e os avós responsabilizando-se presentes.
São alegrias rápidas. Lugares, reencontrados países, becos, passos sob as chuvas que não vos molharão.
VIII
Se falta alguém nesses versos pele vento interminável, pelas arenas de estátuas, sucedam-lhe os cegos olhos sacudidos pelos medos, mãos de chuvas lhe inteiricem o corpo com algas remissas e com matérias tranqüilas tão soturna como os poços, exasperados invernos, ombros de escova comida, as asas secas caídas, ante seus netos calados; e incorporem-se a esse alvitre esse sabor de cortiça, essas esponjas morridas, essas marés estanhadas, essas escunas de espáduas estritamente fechadas como casas de abandono, restringem-se os conciliábulos, certos sigilos de pez, certas coisas enlutadas, refúgios, dramas ocultos, pois as rosas são de trapos e os fios menos que teias, menos que finos agora, e as camisas sem os pêlos enterrados nas ilhargas, vestem enganos e punhos e crimes em vez de adegas, mas tudo em vão, mesmo as plumas, mesmo os ausentes e as vozes aderidas a fragmentos aí moram degredadas, listrando as grades, de faces que não conhecem espelhos
IX
Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos E flores despenteadas, flores largas e a barbárie e inconfidentes quase abominadas dos corpos. por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade do espírito Lírios eram pilares de cristal sob o cerco subindo para as aves; então dardos da matéria. desceram sobre os mais amados colos cantando amor com seus sentimentos.
Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu sei de cor os rebanhos, e olho o mundo. Tudo contém pequenas doces máscaras. Mas da selva selvagem desce o pranto dos que mastigam suas próprias fomes, sem saliva de pão, e o gosto ausente.
Ninguém consegue assim amar os lírios. E esse amor é amaríssimo e adstringente com a memória das dores engolidas.
X
Vós não viveis sozinhos os outros vos invadem felizes convivências agregações incômodas enfim ambientalismos, e tudo subsistências e mais comunidades; e tantas ventanias acotovelamentos, desgastes de antemão, acréscimos depois, depois substituições, a massa vos tragando, as coisas vos bisando; os hábitos, os vícios, as moças embutidas mudando vossas cartas; sereis administrados no sono e nos pecados, vós mapas e diagramas com várias delinqüências, e insanidades várias, dosando o vosso espaço, pesando o vosso pão de tempos racionados; e não tereis vivido e não tereis amado, porém sereis morrido.
XI
Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime? Clodoveu ou Clodovigo? Éreis vós por acaso eles? Éreis vós aqueles nomes, estes, e os demais já mortos, os mortos tão renovados nós mesmos sempre chamados Lútero, Lotário, otário, sim otário tão singelo, tão puro de todo o mal, relativo, universal.
Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime? Dizei-me se acaso vós éreis eles ou voz sou de algum avo tão otário, tão eu mesmo como voz, como poema de outros vários.
XII
O simples ar de uma só corda em curta raia, mão de menino, punhado escasso, ar perfumado, sem o alvoroço dos vendavais; anjo acolhido em róseo céu abrigo instante, pranto lavado, chorar em ti de arrependido, subir teus vales, amar teu pólen, nunca escapar-me de tuas pétalas cair com elas.
XIII
Uma janela aberta e um simples rosto hirto, e que provavelmente nela se debruçou; e nesse gesto puro do rosto na janela estava todo o poema que ninguém escutou; só a janela aberta e o espaço dentro dela que o tempo atravessou.
XIV
O contro era um dia, um dia futuro, e dentro do dia incluído o conforme, e dentro o que foi porque fora isso se tal não se dera, se o mundo parasse e o espaço se excluísse; se a pedra não fosse o símbolo que era pois tudo era um dia, um dia sem dia, porém com o poeta que um dia seria.
XV
De manhã estrelas verdes na inocência do ar coleado, intranqüilas e veementes. Ao zênite e areia em sede, asas das hastes pendidas, as nuvens-castelas altas como painas amealhadas. De tarde a visão das velas, nuvens baixas sobre as verdes rosas das hastes fictícias; os desejos dissolvidos repousam abertamente; e esse deserto de vozes e estes cabelos perenes de seus nervos para os dramas. Mas se as palmas fossem isso, as fontes seriam pratas, e as pratas seriam o puro sonho de quem vive. Todavia o sonho é como as palmas dessas palmeiras. Eis as palmas.
XVI
Os dois ponteiros rodam e rodam, mostrando o horário irregular. Horas inteiras despedaçadas, horas mais horas desmesuradas. Com seu compasso, lá vem a morte pra teu transporte, e com os dois braços: esta é tua hora, levo-te agora.
XVII
Um te exalou nessa incidência: céu, terra, mar; impermanência. Outro te andou te indo e te vindo pra te juntares, te convergindo Quem te volou, esse te deu o sono no ar. Esse te entoou e te nasceu sem te acordar.
XVIII
No dia seguinte: chamamos de terra, o poema te leva te dana, te agita, te vinca de cruzes, te envolve de nuvens. Quem sabe aonde vai parar no outro dia?
XIX
Roteiros vencidos compassam a festa: a noiva está fria no véu lamentado. Três potros desfraldam-se três faces transcorrem no coche morrido, em vão galopado. O nome do noivo? O nome da noiva? O nome do diabo? Três nomes corridos, três sombras penadas no drama calado.
XX
Aqui e ali me encontrareis, entre um poema ou em seu curso, além e aquém, oculto e claro, vivo ou demente, ou mesmo morto, ou renascido como meu sósia, intermitente, ferida tórpida. pulso de febre, nesse cavalo, naquela tinta, naquele poema quase alicerce, quase esse infante, esse anjo surdo. Ia esquecendo: eu e meu sósia somos momentos entrelaçados. Ei-lo veemente volta a seu palco, sobe a uma origem, desce de novo, envolto ou nu, esse homem gêmeo, jamais verdugo, mas palma incerta, sendo meu pai, meu filho e neto e aquele longe porém limiar, malgrado e clâmide aberta e alípede, foi argonauta, podia se-lo se esse jacinto não fosse canto, canto de galo crepuscular, profusamente cedo se oculta por essas laudas sem perceber seu fácil ímpeto ante a palavra visualizada; mas de repente desaparece. Agora eu surjo naquela esquina, naquele pórtico falam de mim; ouço transido esses vocábulos desconhecidos, emerjo em rios que vão passar, mergulho em rumos acontecidos, sucedo em mim, depois vou indo fundo e arrastado na correnteza que é de repentes. Morto incorrupto guardo meus naipes mais pressentidos, intercadentes, desordenados, não há atavios, não há disfarces, dissolução dos prantos largos manando laivos, lanhando aspectos; desacredito-me perante os leves, nem sabedor de alas longevas, se o porvindouro é puro exórdio precocemente desencantado; se os seus presságios remanescidos, salvo-condutos manifestados; correm desvios vulgares trilhos, que todavia prossigo em mim, minha progênie, uns dementados, outros co-réus, reconciliando-me com os mutilados e este glossário que é de meu sósia; abastecido alego dores, crescentes cargas; me patenteio, fico exaltado sem parecer; depois me espreito na curva adiante, simbolizado, metade em mim inda nascendo, a outra metade superlotada; então me sano excluindo as nucas executáveis; não evidentes nem aberrante me envolvo de alma, doce alimária com alguns anexos aparelhados para colher belas paisagens e outros petrechos do sósia amado; quero sofrer-me, quero imitar-me, fico enpunhado meu corpo no ar, dependurado, meio aderido a alguns palhaços insimulados, portanto, instáveis, muito insossos, muitos até beatificados; ventos corteses bem-parecidos vêm agitar nosso espantalho, enquanto as aves canoramente se desaninham de nossos braços, ossos atados a chão deitados, chãos contestados por figadais, mas afinal chãos estrelados de algumas plantas ambicionadas por umas moças que andando sós se despetalam e virar brisas, fagueiras asas, pelas janelas passam nos vidros, vão aos relógios param os cucos, e a vila fica inteiriçada. dormindo dentro desse poema recomeçado por novo sósia.
XXI
As portas finais, os cantos iguais, os pontos cardeais, sempre obsidionais. Os tempos anuais, as faces glaciais, as culpas filiais sempre obsidionais. Os dois iniciais, as dores tais quais, os juízos finais sempre obsidionais.
XXII
Era uma vinda, dadas as luzes, dadas as faces que ali se achavam, nenhuma espúria, nenhuma enferma, dadas as cores, dadas as falas que ali se achavam; dadas as provas dessas presenças deu-se o milagre em aços doces, em gumes brandos em chamas graves; formou-se um gênio pentangular que começava com a estrela Vésper, riscando a noite sem se acabar; formou-se um lírio na suave treva, gerou-se um grito de tantas vozes, criou-se um fogo correspondente, jorrou-se um pranto desabitado. Era uma tarde: ninguém sabia o que no mundo ia acabar. Sei que houve portas escancaradas, sei que houve apelos antiencarnados. E houve um dilúvio, mas era um fogo desabrochado.
XVIII
Quando menos se pensa a sextina é suspensa. E o júbilo mais forte tal qual a taça fruída, antes que para a morte vá o réu da curta vida. Ninguém pediu a vida ao nume que em nós pensa. Ai carne dada à morte! morte jamais suspensa a taça sempre fruída última, única e forte. Orfeu e o estro mais forte dentro da curta vida a taça toda fruída, fronte que já não pensa canção erma, suspensa, Orfeu diante da morte. Vida, paixão e morte, - taças ao fraco e ao forte, taças - vida suspensa. Passa-se a frágil vida, e a taça que se pensa eis rápida fruída. Abandonada, fruída, esvaziada na morte, Orfeu já não mais pensa, Calado o canto forte em cantochão da vida, cortada ária, suspensa. Lira de Orfeu. Suspensa! Suspensa! Ária fruída, sextina artes da vida ser rimada na morte. Eis tua rima forte: rima que mais se pensa.
XXIV
A sextina começa de novo uma ária espessa, (sextina da procura!) Eurídice nas trevas, Ó Eurídice obscura. Eva entre as outras Evas. Repousai aves, Evas, que a busca recomeça cada vez mais obscura da visão mais espessa repousada nas trevas Ah! difícil procura! Incessante procura entre noturnas Evas, entre divinas trevas, Eurídice começa a trajetória espessa, a trajetória obscura. Desceu à pátria obscura em que não se procura alguém na sombra espessa e onde sombras são Evas, e onde ninguém começa, mas tudo acaba em trevas. Infernos, Evas, trevas, lua submersa e obscura. Aí a ária começa, e não finda a procura entre as celeste Evas a Eva da terra espessa. Eurídice, Eva espessa, musa de doces trevas, mais que todas as Evas - musa obscura, Eva obscura; sextina que procura acabar, e começa.
XXV
A musa A barba tão preta que era azul, morta que as amantes tão ruivas que eram nulas vem de Amara onze e mais uma, numa só outros morta, em alma, sem cadáver, sem livros tumba, e que amara - morta, morta, morta.
XXVI
Sombra encantada, declinara num vago dia, incerto dia. Eis uma deusa, pelos gestos, por sua dança, sua órbita. Era preciso compreendê-la, mas quando nós a avizinhávamos, a deusa arisca recuava. Se nós recuávamos, voltava ao nosso encontro, sem tocar-nos. Então corríamos, devassos, quase enlaçando-a: ela fugia. Era uma deusa pelos modos com que mentia e se ausentava. Mas outro dia, vago dia, abrutamente a aprisionamos. O que tu és, deusa, ignoramos, mas desejamos, qualquer coisa fazer de ti, terror ou júbilo ou nossa vênus favorável ou nossa esfera de vocábulos. Ela chorava, não queria; e o pranto logo dissolvia. Então descemos, ventre abaixo e renascemos de seu sexo, - trânsito virgem de palavras. Era uma deusa, pela fúria com que nós todos a ultrajamos. Era uma deusa e não sabíamos se cada qual mesmo a violou. Era uma deusa, pela dúvida que em cada um de nós, deixou.
XXVII
Contemplar o jardim além do odor e a mulher silenciosa entre semblantes, e refazê-los todos, todos antes que o tempo condenado os atraiçoe. Porque eu quero, em memória refazê-los: À procura da flor longínqua, mulher, não pertencida, face perdida substância inexistente, móvel vida, intercessão de nadas e cabelos. E meus olhos ausentes me espiando entre as coisas caducas e fugaces a minha intercessão em outras faces. Orfeu, para conhecer teu espetáculo, em que queres senhor, que eu me transforme, ou me forme de novo, em que outro oráculo?
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