Bocage : Elmano a Gertrúria
em 06/10/2008 15:50:00 (3762 leituras)
Bocage

Cá do pé das gangéticas ribeiras,
Inimigas da paz, e da alegria,
Cá dentre serpes, tigres, e palmeiras:
A ti, bela Gertrúria, Elmano envia
Seus gemidos terníssimos, e ardentes
Sobre as cinzentas asas da Agonia.
Se o teu fiel carácter não desmentes,
Se inda em teu coração não teve entrada
A variedade, o vício, dos ausentes;
Se do voto recíproco lembrada
Suspiras por me ver, como suspiro
Por dar-te beijos mil na mão nevada;
Chorando escutarás o que profiro:
Estes queixumes vãos, que entrego aos ares,
Estes inúteis ais, que da alma tiro.
Do santo abrigo de meus deuses lares
Pela Sorte cruel desarraigado,
E exposto em frágil quilha a bravos mares;
Sobre as espaldas do Oceano inchado,
Dirijindo tristíssimo lamento
Contra o céu, contra Amor, e contra o Fado;
Debalde conjurando o rouco vento,
Em vão pedindo a Tétis sepultura
Nas entranhas do mádido elemento:
Pus, finalmente, os pés onde murmura
O plácido Janeiro, em cuja areia
Jazia entre delícias a ternura.
Ali, como nas margens de Ulisseia,
Prendendo corações brincavam, riam
Os filhinhos gentis de Citereia;
Mil Graças, que a vanglória trocariam
Em vergonhosa inveja à tua vista,
Usurpar-te meus cultos presumiam;
Eis olham como fácil a conquista;
Mas a fé me acompanha, a fé me alenta,
E constância me dá, com que resista.
Este combate a glória me acrescenta:
Conhece-se o valor do navegante
Em tenebrosa, horrísona tormenta.
Contemplando na ideia o teu semblante,
Pude evitar o escolho, onde naufraga
O coração mais livre, e mais constante;
Um virtuoso amor nunca se apaga:
O tiro de outra mão não faz emprego
Aonde a tua abriu tão doce chaga.
Sempre no mais cruel desasossego,
Sempre comigo mesmo em viva guerra,
Às vastas ondas outra vez me entrego.
Os negros furacões Eolo encerra,
Até que aos frouxos olhos se me of'rece
O bruto Adamastor, filho da Terra.
Vê-me o monstro, que ainda não se esquece
Da nossa antiga audácia, e logo exclama
Com voz horrível, que trovão parece:
"Oh tu, que de uma vã, caduca fama,
De uma ilustre quimera ambicioso,
A estrada vens saber do afoito Gama;
Tu, dos servos de Amor o mais ditoso,
Se as desordens fatais da louca idade
Te houvesse reprimido o céu piedoso;
Tu, que de uma terrestre divindade
Memorando os encantos, e os agrados,
Deliras entre as garras da saudade;
O modelo serás dos desgraçados,
Porque mais, ó mortal, a ver não tornas
Meigos olhos, por Vénus invejados.
As correntes de lágrimas, que entornas,
Os suspiros, que exalas de contínuo,
A singular paixão, de que te adornas,
Nada revoga as ordens do Destino:
Que eu de opaca procela estenda o manto
Quer, e ao fatal decreto a frente inclino;
Mas a tua aflição move-me tanto,
Que os olhos meus, a permiti-lo a Sorte,
Saberiam, por ti, que coisa é pranto.
Das entranhas do inferno arranco a morte,
Que a lei do Fado, a meu pesar, me obriga
A que a vida misérrima te corte.
Mares, lambei dos céus a base antiga,
Morra Elmano; adejai, ddragões do Averno,
Sobre o veloz baixel, onde se abriga!"
Disse dos nautos o inimigo eterno,
E aos ares arrojou no mesmo instante
Medonhas trevas, pavoroso inverno.
O céu troveja, Eolo sibilante
Ora aos abismos, ora aos astros leva
Entre as asas da morte o lenho errante:
Sobre ele o mar violento a fúria ceva,
Rebentam cabos, não governa o leme,
Consternada celeuma ao ar se eleva.
Em tanto horror meu coração não treme,
Antes se alenta, agradecendo ao Fado
Um bem, que impora, - a morte, que não teme.
"Parcas! (eu grito) ó deusas, que a meu lado
Andais brandindo as foices carniceiras,
Inclinai para cá seu gume ervado:
O golpe em mim descarregai ligeiras,
Enquanto of'reço à cândida Gertrúria
O final pranto, as vozes derradeiras."
Céus! Que prodígio! O vento aplaca a fúria,
E a teu nome adorado a própria Morte
Não ousa, em dano meu, fazer injúria;
Teu nome vence a cólera da Sorte:
Torna a luz, foge a sombra, e já mil vivas
Os muros vão ferir da etérea corte:
Só eu choro o prazer, que tu motivas,
Só eu sinto escapar deste perigo,
Só eu culpo as estrelas compassivas.
A próspera derrota assim prossigo,
Até que vejo, e piso a sepultura
Dos tristes, que não tem na pátria abrigo.
Aqui vai sempre a mais minha amargura,
Aqui, pela Saudade envenenado,
Como espectro acompanho a Noite escura:
Aqui ninguém me atende, (oh negro fado!)
Nem deuses, nem mortais, ninguém me atende:
Tão molesto se faz um desgraçado!
Só teu suave nome, a quem se rende
O próprio deus de amor, algum momento
Meu pranto enfreia, minhas ânsias prende.
Sou qual febricitante, que sedento
Em libar fresca taça alívio goza,
Afagando com ela o sofrimento.
Ai gesto encantador, face amorosa,
Que me inspiraste da paixão mais pura
A doce chama, a chama deleitosa!
Que torrente de gosto, e de ternura
Fizeste borbulhar no meu semblante,
Enquanto o permitiu minha ventura!
Qual na cálida sesta o caminhante,
Que em despenhada fonte, amena, e fria
Matar o vivo ardor vai anelante;
Tal nas asas do júbilo eu corria
A saciar em ti, vista adorável,
O sequioso amor, que em mim fervia.
Oh lúbrico prazer! Fortuna instável!
Apenas fui feliz, fui desgraçado:
Oh catástrofe acerba, e deplorável!
Mas tu, Gertrúria bela, ídolo amado,
Tu, meu único bem, cuja mudança
Me faria acabar desesperado,
Por piedade não percas da lembrança
O terno adeus, e as lágrimas, e os votos,
Com que ele vigorou minha esperança.
Vê que, entregue ao furor de horríveis Notos,
Vim, só por me fazer de ti mais digno
A climas, do meu clima tão remotos.
Semblante, para mim sepre benigno,
Reserva-me um sorriso: ele somente
Pode o meu astro serenar maligno;
Eles só me fará viver contente:
Só nele está suspensa a minha glória,
Só dele o meu sossego está pendente:
Voemos para o templo da Memória,
Nossa fidelidade ao orbe espante,
E sirva de modelo a nossa história;
A todo o baixo espírito inconstante
Para castigo apontem-lhe a firmeza
Do triste Elmano, e de Gertrúria amante;
Obra a mais singular da Natureza,
Erário dos seus dons, conheça o mundo,
Que és tão rara em amor, como em beleza;
Abunda nas saudades, em que abundo,
Manda-me lá desses ditosos lares
Nas asas da ternura um ai profundo,
Não tope densa nuvem pelos ares,
Que a fortaleza, que o valor lhe tire:
Venha, ah! Venha, apesar de imensos mares,
E em meus ouvidos, fatigado, expire.


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