Hilda Hilst : Alcoólicas
em 13/06/2008 15:00:00 (7209 leituras)
Hilda Hilst

Alcoólicas
de Hilda Hilst


É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

(Alcoólicas - I)



* * *



Também são cruas e duras as palavras e as caras

Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida

Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos

Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes

Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos

Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas

De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo

Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas

Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento

Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte

É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.

Sussurras: ah, a vida é líquida.

(Alcoólicas - II)



* * *



E bebendo, Vida, recusamos o sólido

O nodoso, a friez-armadilha

De algum rosto sóbrio, certa voz

Que se amplia, certo olhar que condena

O nosso olhar gasoso: então, bebendo?

E respondemos lassas lérias letícias

O lusco das lagartixas, o lustrino

Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos

E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.

Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me

Na noite navegada, e rio, rio, e remendo

Meu casaco rosso tecido de açucena.

Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

(Alcoólicas - IV)



* * *



Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito

Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado

Salpicado de negro, de doçuras e iras.

Te amo, Líquida, descendo escorrida

Pela víscera, e assim esquecendo

Fomes

País

O riso solto

A dentadura etérea

Bola

Miséria.

Bebendo, Vida, invento casa, comida

E um Mais que se agiganta, um Mais

Conquistando um fulcro potente na garganta

Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.

Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos

Quando não sou líquida.

(Alcoólicas - V)

(in Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)

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Enviado por Tópico
jessé barbosa de oli
Publicado: 14/06/2008 12:15  Atualizado: 14/06/2008 12:15
Da casa!
Usuário desde: 03/12/2007
Localidade: SALVADOR, Bahia
Mensagens: 334
 Re: Alcoólicas
sim, a vida é líquida
em sua contradição,
em sua anarquia:
um pegasus em infinita vaga de aluviões;
ela é hilda, hilda, hilda!
este é um dos melhores poemas que eu já
li em minha vida e foi por isso que eu o
postei.
hilda hilst era uma poeta estupenda!

Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 14/06/2008 12:21  Atualizado: 14/06/2008 12:25
Colaborador
Usuário desde: 13/10/2007
Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: Alcoólicas p/Jessé
Amigo Jessé,

Você um comentário que eu lhe escrevi sobre a minha querida Hilda Hilst?

Júlio

ps: Publiquei aqui mesmo um poema para hilda hilst. ninguém se interessou em ler.

Enviado por Tópico
fotograma
Publicado: 27/11/2012 21:42  Atualizado: 27/11/2012 21:42
Colaborador
Usuário desde: 16/10/2012
Localidade:
Mensagens: 1473
 Re: Alcoólicas
muito boa

tô até de pileque...

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