Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta, só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranquilidade.
É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego.
Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar a sua meditação e a sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos
companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa: o banheiro.
Se não lhe batem à porta outros homens (pois um lar, por definição, é composto de mulher, marido, filho, filha e um ou outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais, ele, ali, e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta.
Aqui é que o chefe da casa, já passando dos quarenta anos, olha os cabelos já grisalhos, os claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o estão conduzindo, embora bem sucedido na vida prática, a essa lenta degradação física. Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num mundo encharcado de instabilidades.
É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende usar mais tarde
naquela senhora bem mais velha do que ele, mas ainda cheia de encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler o bilhete secreto que recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a solidão necessários para degustá-la e suspirá-Ia. É aqui também que ela vem
verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de medo e desprezo.
É aqui que a dona de casa, a mãe de família, um tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente no dia em que
descobre ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção insensata por parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui ninguém saberá, ninguém a surpreenderá, pode amargurar-se até os soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo lar.
Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro, nem existe ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos.
O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem moderno, e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento da solidão ocasional.
Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu ultimo espelho que é o propriamente dito.
Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!
Extraido do site: Catraca Livre