
A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
Data 21/09/2009 04:56:35 | Tópico: Poemas
| "Lembra-te de minha miséria e de minha angústia: absinto e veneno! Eu me lembro, sempre me lembro, transido dentro de mim."
Lamentações de Jeremias, 3ª Lamentação - 19,20
Alef
depois da chuva veio outra chuva e mais outra chuva e nada restou da colheita
Bet
talvez seja eu aquele homem sufocado perdido no meio dos escombros talvez seja eu aquele homem no meio dos escombros
Guimel
não sei ao certo se foi salvação ou castigo agora é tarde para saber sei apenas que os dias se tornaram longos e o pesadelo é fato
Dalet
não consigo mais enxergar estrelas tudo é treva só tenho viva a lembrança dos meus mortos os vivos acho que nunca existiram todas as pessoas que comigo conviveram eram frutos da minha imaginação doente
He
de mim também guardo poucas lembranças a mais importante vem do tempo em que eu transformava licores em fel bebia o fel com gosto e depois me punha a esperar a morte
Vau
passava parte dos meus dias trancado na sala repleta de livros aprendendo a arte de adivinhar o futuro e os meus laços com a morte ficavam cada vez mais estreitos
Zain
raras foram as noites em que a morte não me vinha visitar chegava pudica sua fisionomia era limpa sem nenhum sinal de horror no rosto a morte me beijava a boca acariciava os meus cabelos sussurrava em meus ouvidos e me deixava adormecer no seu colo quando amanhecia a música suave como a respiração de uma criança me trazia de volta à vida
Het
também não posso esquecer da ternura que os cães principalmente os enxotados e doentes me ofereciam quando o ar era escasso e o desespero incontrolável os cães se aproximavam de mim e lambiam as minhas feridas sem nada pedir em troca nem mesmo um afago breve
Tet
muitas vezes experimentei a sensação de um pássaro encolhido nas penas sem o menor desejo de voar pássaro covarde que renunciou à liberdade das alturas pelo limitado espaço da gaiola em troca da ração diária de alpiste
Iod
agora nem céu nem gaiola nem alpiste meus cães estão mortos e a morte porque não transformo mais licores em fel me despreza
Caf
sinto o fio da navalha no pescoço e a grossa baba a me cair pelos cantos da boca minha arma é o grito mas as pedras não o escutam e os insetos me ignoram
Lamed
ó deus dai-me um pouco de temor para que eu vos possa temer arrancai-me do peito a descrença apontai-me os abismos mais profundos dai-me a fúria dos desesperados a indiferença dos loucos e o riso débil dos felizes para que eu torne a acreditar
Mem
faltam-me as lágrimas gostaria de poder chorar como as mães que perderam seus filhos nas guerras
Nun
queria muito ser como os rios que desde a nascente sabem o caminho do mar queria ser como os ventos que desconhecem o cansaço
Samec
ó minha cidade desejei tanto vos declarar o amor que nunca senti prostitutazinha de concreto perdoai-me nunca serei o vosso poeta nunca escreverei em versos a vossa história
Pe
tive as malas prontas mas as partidas ficavam para o dia seguinte quando tudo parecia consumado uma mulher surgia na minha frente caía de joelhos aos meus pés a implorar para que eu não fosse
Ain
sempre fiquei não querendo perdi a conta de quantas três mil vezes neguei a mim mesmo escondido atrás do muro da minha vergonha
Sade
quando me negaram pão roí as unhas quando me negaram água bebi restos de tempestades antigas acumulados na memória dos meus piores dias deram-me por morto nos combates em que não estive e gravaram o meu epitáfio nos banheiros imundos dos antros mais ordinários
Cof
hoje sei que só as putas me amaram de verdade por alguns dinheiros elas desnudavam seus ombros cheios de cicatrizes para que eu depositasse minhas lágrimas sobre eles
Res
uma sensação de alívio porém me envolve nesta hora em que o final se aproxima vou levar na mochila aquelas poucas frases que não consegui dizer nas ocasiões de festas ou funerais vou levá-las comigo e depois trancá-las a sete chaves no cofre de pedra do meu silêncio
Sin
ainda não decidi mas devo levar também uma camisa florida adquirida num bazar de caridade nunca a usei mas a estampa servirá de recordação da primavera que esperei em vão não posso esquecer as minhas surradas sandálias de couro cru caso eu mude de ideia elas me farão lembrar o caminho de volta
Tau
toda despedida é inútil amanhã no porta-retrato meu rosto estará mais velho e minha barba mais branca mas se por acaso nada disso acontecer meus amigos eu suplico não sintam piedade de mim matem-me para sempre
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júlio
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