
Ao nada
Data 26/10/2008 08:27:53 | Tópico: Contos
| Meu nada:
Não sei de ti. Tantas décadas passaram... Releio hoje uma carta escrita pelo teu punho, mas que me não era dirigida. Escreveste-a à minha irmã e eu roubei-lha. Sim, não tenho vergonha de o assumir. Roubei-a, roubá-la-ia de novo. Escondi-a durante muitos anos debaixo das tábuas do chão dum quarto partilhado com outrem que me deram por marido. Quando mudei para uma casa alcatifada, descolei um canto da alcatifa e mudei para lá também o seu sepulcro. Mais uma vez as tuas palavras fizeram companhia sienciosa à dor. Sempre me acompanhaste. Agora saiste do teu escoderijo e repousas, amarelecida, desbotada e picada pelo bicho da madeira na minha arca de tesouros. Sem chave nem cadeados! Nas tuas letras quase desaparecidas, leio a exposição das tuas razões, as pressões a que te submteram, os tiros na noite. E pensara eu que apenas sobre mim tinham caído sonoras bofetadas, tiranias e controle desarvorado. Lembras-te de me teres tentado falar à porta da Escola onde eu estudava? Não sei bem o que aconteceu, mas fui informada que lá tinhas estado. Eu fiquei ali dentro guardada. O meu pai tinha avisado o Director. Até apanhar esta carta, eu apenas conjecturei o acontecido... E como pudeste acreditar naquela carta que me obrigaram a escrever-te, sim, aquela em que a minha letra diferente do usual era a única forma de te gritar que aquilo não era meu?! Tu conhecias tão bem a minha letra... A tua resposta enviada para uma posta restante era cruel. Rasguei-a e alguém ta devolveu. Já reparaste no poder das cartas? Nem tu adivinhas o que elas foram na minha vida. Mas eu prometo contar-te...
|
|