
Uma Casa sob o Rio
Data 20/07/2008 13:26:42 | Tópico: Textos -> Amor
| O vagabundo, sedutor, inclinou-se sobre o rio. Ficou longo tempo, imóvel, a observar a corrente, como se tentasse encontrar-se a si próprio no torvelinho das águas. A seguir, perguntou ao homem de cabelos revoltos pelo vento e barba de dois dias, aí reflectido: — É um mundo paralelo, este? — É o meu lugar secreto. — respondeu a outra metade. — Eu gosto de vidas paralelas… — O meu coração irá bater ao compasso do teu. — predisse o seu eu. — E depois? — Depois… Param os dois, para voltar a bater em uníssono. Um fica à espera do outro. — Vamos ser nossos. Vamos sonhar! — exclamou subitamente o vagabundo com ar arrebatado. — O barulho da realidade acordar-nos-á do sonho. Para impedir que as palavras do rio cumprissem a profecia, o vagabundo, sem hesitar, mergulhou nele. Uma mulher vestida de seda aproximou-se da margem. Uma orquídea selvagem adornava-lhe a juba negra. A lua flutuava nas águas, tal qual uma incendiada flor de lótus. A figura líquida do vagabundo seduzia. E o seu alfabeto também. — Há um beijo de chocolate nos nossos lábios, para saborearmos devagarinho… — Encosto-me a ti. — murmurou a mulher — Tanto que quase me derreto nos teus braços quentes. — Braços também eles derretidos pelo calor da tua pele. — acrescentou o vagabundo. Corpo desfalecido… — Beatriz… Beatriz… — a voz do vagabundo perdia-se na noite. Gemidos baixos… Beatriz roçava o seu corpo esguio no infinito. Corpos. Dois corpos, duas almas. Sussurros… Uma alma. Um respirar. Luar… Vinho… Rosas… Poesia… Uma alma é uma pátria. E uma pátria é uma casa. Um lobo — ou seria apenas o vento disfarçado de saltimbanco? — uivou, algures, na lua cheia de água. Os salgueiros estremeceram de terror e a armadura do tempo afogou-se, sem que o vagabundo pudesse, ou sequer quisesse, salvá-la. — Gostas de vidas secretas? — indagou. — A minha imaginação tem asas… — confessou Beatriz, com sensualidade. — Só aqui vivo personagens secretas. — acrescentou o vagabundo que, tal como um camaleão, se disfarçava na corrente. — Ninguém é verdadeiramente livre. São tantos os dias que passo no gorjear dos pássaros, que já me esqueci da voz dos homens… Numa outra vida fomos almas gémeas. — ao dizer isto, acariciou o dorso das águas, como se estas fossem um gato cinzento e lânguido. — Numa outra vida fomos a mesma pessoa. — objectou o vagabundo — almas gémeas somos nesta, porque as minhas mãos de sol querem amadurecer a tua pele. — Tu és um sedutor… — E tu és seduzível! Um sedutor precisa de inspiração. — Um poeta também. — Eu sou um poeta do momento. Faço poesia com a vida. — Não sei se a vida é uma papoila encarnada, se é uma saudade de ti em carne viva… — Então, vamos os dois para o luar, com um cálice de vinho do Porto seguro nas mãos. Hei-de pintar os teus lábios de rubi e beber deles, como se sorvesse do Santo Graal a perfeição suprema. Beatriz semicerrou os olhos, em êxtase. — Tu não existes. — Pois não. Sou apenas uma alma vagabunda. — És um vagabundo como o vento, que se insinua no meu corpo e nos meus cabelos. — E na tua alma também. — És um estilhaço da minha alma. — E tu da minha. — Um dia, nós partimo-nos. — Agora encontramo-nos para crescermos espiritualmente, percorrer caminhos de descoberta e abrir novos trilhos. Caminhos que ainda não existem… — o vagabundo interrompeu-se para escutar a canção das estrelas — É magnético. Os olhos atrair-se-ão até ficarem colados e irão, depois, atrair os corpos, que se colarão também. — Isso é porque preciso ver-me nos teus olhos e tu nos meus. — argumentou Beatriz com convicção. Como se não a tivesse ouvido, o vagabundo continuou a colocar na boca os seus pensamentos. — Até que, húmidos, suados, os olhos e os corpos, numa amálgama de sentidos e de poemas, escorrerão um do outro. — Encontrar-se-ão outra vez no chão e levantar-se-ão. — O universo não existe. Só tu e eu encarnamos a realidade. — Somos nós, o universo! — Hoje és o meu universo. Somos dois mundos prestes a colidir. Nada irá sobreviver. — A vida sobrevive-nos. Um barco azul passou rente ao vagabundo. As velas esvoaçavam, aflitas, como as asas das borboletas. Nenhum dos dois apanhou o barco. A vida acenou-lhes, de longe, sem nunca largar o leme. — Fundir-nos-emos. Ficaremos do mesmo tamanho, mas mais brilhantes. — Se calhar, porque a poeira das estrelas irá cair sobre nós… — aventurou dizer Beatriz, enquanto passeava as suas íris de avelã pela via láctea. Por isso, não sabia dizer se fora ela ou se fora o eco das coisas passadas, quem repetiu: — És um sedutor. — Mas, foste tu quem me seduziu. Beatriz abeirou-se do lodo, o qual tingia as margens, e pediu, num convite cheio de volúpia: — Quero sentir a tua barba arranhar-me a pele. — E eu quero sentir-me tocado… Sentir-te arranhada… Tocar-te… Sentir que me estás a sentir… Queimar a tua pele com a minha respiração… Suar… A seguir arrefecê-la com a boca… Lamber o teu suor… — A tua essência é que me toca. Dá-me alma. — Quando aninhas a tua alma nos meus olhos, o mundo detém-se. Ouço só o bater do teu coração, porque o meu adormece nas dobras do teu corpo. — O meu corpo é como este rio, dá vida ao teu coração. — Por isso, mergulhei sem Norte no teu rio. — Vem ver o meu fundo e o que nele cresce. Banha-te em mim… Fica dentro de mim. Serei a tua concha, o teu abrigo. O vagabundo, mais sedutor do que nunca, estendeu a mão a Beatriz. Esta, libertando-se da seda que a envolvia, imergiu na misteriosa floresta de limos. O pio de uma coruja feriu a noite, transformada em madrugada. — Decerto, a ave matará a poesia… — segredou Beatriz no ouvido do vagabundo. Os seus corpos confundiram-se, metamorfoseando-se numa raiz de marfim. — A poesia é para matar. — sentenciou o vagabundo — A morte é paixão! Um peixe fugido do arco-íris veio aquietar-se nas reentrâncias daquela estranha raiz. — Como é bom retornar a casa… Os olhos da Beatriz aprisionaram o olhar do vagabundo. Ou será que foi ao contrário? Onde começava um e acabava o outro? Ouviu-se o canto de Oxum — a deusa do rio — e, fecundas, as águas principiaram a adormecer. O vagabundo soprou a lua e esta, tal qual a chama de uma vela, apagou-se. Do céu, começaram a chover estrelas em pó. No leito do rio, uma pálida raiz de marfim brilhou mais do que todas as outras…
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