
22ª foto – A crendice
Data 16/05/2008 23:34:35 | Tópico: Textos
| A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas até se esgotar o sangue e o reflexo. O asfalto da rua principal estava ensopado e, além da ignorância, não havia nada que explicasse aquilo. A lua, na noite anterior, tinha desaparecido do céu e as gentes tinham deixado fugir a razoabilidade, refugiando-se nas palavras alucinadas de um ancião eremita que se escondia com os lobos, longe da população... vá-se lá saber porquê, só aceitava como iguais os animais. Naquela noite, o velho, aparecera na taberna da Rosa e tinha emborcado uns tintos... alguns a mais do que a conta. Soltou a língua de uma forma que assustou os presentes e alvitrou que o mundo ia acabar. A premonição tinha contornos de real, o homem foi eloquente e deixou margem para a imaginação popular. Gritou, para cima das mesas que se deveriam sacrificar os não pensantes, que os céus exigiam sangue e que o iam conseguir de qualquer forma. As pessoas, que sempre, por natureza, foram impressionáveis e acreditavam nas vozes grandes, não duvidaram de tal orador e reuniram-se de barriga encostada ao balcão... medo! Estavam todos apavorados e crédulos no desejo anunciado dos céus. Durante aturada discussão, surgiu um "Se tem que se sacrificar algum bicho, que se matem as galinhas". Trôpego, o arauto, deixou a taberna envolta em murmúrios e seguiu para a sua clausura. Desapareceu ao fundo da rua e, nesse momento, iniciou-se um eclipse. A lua diluiu-se na noite e do medo da mol fez-se pânico. Gritos, orações, choros, desmaios espasmáticos, promessas, almas desalmadamente abertas... pânico verdadeiro. A lua voltou já perto da madrugada. A população excitada correu para os galinheiros de faca em punho, de olhos esbugalhados e com os cantos da boca húmidos de branco pastoso. O cacarejar estridente e aflitivo dos animais nasceu com o dia. Começou-se a sentir o odor enjoado do sangue. A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas. Uma a uma lá foram tombando esvaídas. O amanhecer abriu de olhos limpos mesmo por cima da aldeia. As gentes, extenuadas, arrastaram-se para as portadas das suas casas, entre lamentos velados. A rua pricipal da aldeia espreguiçou-se pejada de aves mortas. Começavam a aparecer as moscas. A população desapareceu dentro das suas casas. Silêncio absoluto. Nem vento. Tudo dormia. No limiar da aldeia surgiu o eremita. Sorria. Aproximou-se desenrolando um saco enorme e começou a enchê-lo com os cadáveres. Encheu-o de tal forma que mal o conseguia arrastar. Amarrecado e em esforço mas satisfeito, o velho afastou-se e juntou-se à sua matilha de lobos. Em silêncio, partiram, enquanto a gentalha dormia cansada e iludida. Em silêncio, partiram sem olhar para trás. Lá para a frente, noutro ponto da idade, haveria outro medo qualquer para agarrar.
Valdevinoxis
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