
domingo à noite
Data 27/10/2024 20:08:04 | Tópico: Textos
| Domingo à noite. Saio do comboio com as malas. Para nova viagem, agora de autocarro. É cedo, mas o sol já se foi há muito. Escuro, o sítio está quase vazio. À exceção de mim na paragem de autocarro. E de umas quantas prostitutas, fora da paragem. Sento-me. Pode ser que assim não me confundam. O autocarro demora. As prostitutas perfilam-se perto e desconfiam. Nova, eu? O sítio está tomado... Pára um carro para uma "vizinha". Olha para mim e diz qualquer coisa. O autocarro, por favor.
Lá vem, lá vou eu. Última paragem e saio. Agora é a pé. Com as malas. Quem me vir andar, parece que pouco pesam. As malas. Ando rápido. Não porque quero chegar rápido a casa. Mas porque quero fazer um telefonema. À frente e pelo caminho há uma cabine telefónica. A casa pode esperar, e bem. O mais provável é chegar lá e ter a cama desfeita, a minha roupa usada e a minha loiça suja. O povo gosta mais da galinha da vizinha. É o que dá partilhar casa. Que grande merda. Mas a chamada. Chego à cabine. A perspetiva da chamada deu alento à caminhada (ainda longa), a mim. Sorri até com a ideia. Sinto borboletas na barriga... Domingo à noite é hora de lágrima presa, atilho no pescoço. Quem quer o domingo à noite? A cidade vazia, quase. Escuro e frio. Chuvisca agora... Raios. Vou ficar um pinto, se continuar. Mas a cabine é fechada. Malas no chão, moedas para o sorvedouro. Uns alongamentos nos ombros. As malas ainda fazem algum estrago. Respiro fundo e marco o número. Chama do outro lado. Atende outra voz que não a tua, "ele não está". A voz di-lo com pena de mim, parece. " Não sei a que horas vem, mas deve vir tarde", "quer voltar a ligar?". Como voltar a ligar? Só se esperar aqui. Merda, outra vez. Aguardo. Neste cubículo. Espero que não apareça ninguém que precise do telefone. Espero. Mais um bocado. Sento-me no chão. Não posso com os pés. Quem manda andar de saltos altos? Este percurso é de sapatilhas. Deus me livre! Estou cansada. O ânimo desapareceu quase. Volto a ligar e se ainda não tiver chegado, pronto, vou pra casa. Ligo. "lamento, mas ainda não chegou, menina", "não tem problema, eu depois volto a ligar outro dia" Outro dia.... É domingo à noite. Tinha de ser hoje para o domingo desaparecer... Malas e mais caminhada. Agora é só subir e chego. Ponho a tiracolo uma delas e a outra é trolley. Que peso! Puxo, puxo e pouco ando. Tenho de tirar a que tenho no ombro. Pesa chumbo. Paro e espero, olhando para as malas. Que raio? Volto a tentar, e dou uns passos com as malas, mas assim não vai dar. Nunca mais. Nem consigo andar, quanto mais chegar a casa. E agora? Deixo uma delas aqui, no meio da rua, e depois volto buscá-la? Arrisco ficar sem ela e que grande trabalheira. Não entendo... Mas se ainda há pouco... Deixo a do tiracolo e levo o trolley. Mais fácil. Mas até esse tem de ser com puxões. Não anda. Começo a desesperar... Vou buscar a tiracolo e nem consigo levantá-la do chão. Vou para o trolley. Puxo de novo. Nada. E começo a chorar. Nervos. Sofro dos nervos. Como faço para sair dali e ir embora? Alguém pôs pedras nas malas enquanto eu estava na cabina.... Porque não estavas em casa??? Decido que não consigo levar as duas. Uma tem de ficar. Levo a outra. Um pedaço e desisto mais à frente. Vai ficar ali. Não dá. Impossível levar esta também. Os meus pés.... Bem, nesse caso, vou sem nada. Mas até o meu corpo me pesa... os pés ardem de dor e os ombros carregam troncos. E sigo, chorando, molhada da chuva que caiu e eu nem senti, a medir cada passo que se incendeia quando pouso os pés no chão. As malas.... É domingo à noite e tu não estás.
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