
Era uma vez
Data 26/05/2021 00:01:33 | Tópico: Poemas
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As construções, as fundações, as paredes verticais O edifício de comunhão com a realidade É fruto do suor ácido do trabalho do meu corpo Pertence-me e ninguém tem o direito de o profanar.
Depois de mais um domingo investido na diversão dos tolos No lazer dos homens rasos, plebeus malditos Rasgo, quase sem ler, com tendências suicidas o jornal tendencioso.
Levanto-me da velha poltrona de pele Com a rapidez inusitada de quem cometeu um crime hediondo Com a sensação de culpa premente a latejar nas veias Como as contrações de um parto iminente Que, sem problemas maiores de consciência, decido abortar
Chego-me ao aparador, já livre de qualquer culpa, contigo no pensamento Encosto-me e estagno, gélido, imóvel Como se a minha imagem mortiça, o aparador antigo e o bege das paredes Compusessem uma fotografia sépia comida pelos anos Aprecio, então, a moldura imponente no outro canto do móvel Onde tu emanas vida e contagias a paisagem nela capturada Despertando em mim, uma sensação de urgência profunda
Uma urgência em tons monocromáticos de azul Uma urgência... Uma estranha necessidade que conheço tão bem Finjo que faço, finjo o embaraço, quase sem pensar E só os teus olhos me conhecem tão bem Só eles me conduzem e levam sereno Ao azul das tuas lagoas profundas E, são elas, na sua beleza, a eterna razão da minha urgência.
Reajo, com o alento do teu alento lembrado, e em dois passos chego à janela Afasto a cortina e revela-se, por instantes, a nua invisibilidade da vida O Quim pasteleiro, subindo apressado a meia dúzia de degraus Que dão entrada para a travessa da minha casa Distraído pelo atraso que advém das coisas básicas da vida Vem subindo os degraus na ilusão interna de os subir Já atrasado para o turno de fazer bolos na pastelaria do fundo da rua É a vida que se adianta, sem lhe mostrar o que a realidade reserva Nem a do pai dele, o António barbeiro, nem a do Modesto do talho Nem a do Xico da retrosaria, nem a das peixeiras da praça A certeza real de ser a argamassa que une os degraus imundos da sociedade Permanecendo prensada e sem meio nem razão para os subir A dura realidade de não ser e ser apenas suor caído na massa por amassar, no turno da noite a fazer bolos na pastelaria do fundo da rua Confiscada pelos diabos que manipulam esta tristeza de ser E sobreviver de subsídios a favor da ganância daqueles que podem E emprestam ao mundo um jogo de sombras Discursos cursados de eleitos predestinados Os ascendidos, os favorecidos, os elevados Aos ombros dos amigos, amigos dos favores À sua imposição Vergar, vergar, vergar
Sem prestar contas à luz Sem ouvir licença à voz Tudo cobrado em lágrimas
Assola-me, momentaneamente, a descrença colada ao impossível Uma fragrância de mar que condensa sentimentos Desconcertantes aromas libertados entre palavras oceânicas Antes de mergulharem na rebentação de um mundo de sal. Toco a pele sensível de uma lágrima, moldada na urgência da dor Espada de ferro, forjada no fogo apocalíptico do meu erro Que trespassa a malha fina do meu tormento Do meu iminente arrependimento
O tudo, que eu devia poder O tudo que eu devia saber O tudo que eu, devia fazer O tudo… Eu devia poder tudo E saber tudo E fazer tudo Porque eu, tenho tudo Porque, eu sou tudo E de tudo Tudo E o céu tão perto
Talento livre e espontâneo derramado em folha branca, obra feita Voz natural acolhedendo ecos no anfiteatro da alma, asilo de mim Caminho vereda mediterrânea nos passos do meu quintal Oh! Como sofrem as pedras Oh! Como sinto o silêncio Espirituosa a vontade do vento Quando desarranja o cabelo das moças a caminho da igreja Perfeita a inquietação da lua Quando se mostra ao mundo plena de feitiço Quando desperta o mestre vampiro, noturna solidão No seu desconforto sanguinário Na sua sede incontrolável Movendo-se pelos meandros inconscientes Onde as memórias de um futuro feliz São punhados de terra húmida cobertos pela névoa da madrugada É nesta urgência, poderosa ânsia, que controlo o pensamento É onde tudo se cumpre e onde a vida real acontece Como um infalível destino Como uma infinita treva Enquanto as eras do silêncio perduram e reinam no veludo do universo sentido. Agora que amanhece, o sol rompe a linha do horizonte Iluminando os ecos perdidos da minha mente Ditando o fim desta noite.
Marioneta do dever, um novo dia Liberdade Liberdade Liberdade Passar no quiosque Comprar o jornal Mais tarde, arroz com atum para o almoço.
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