
Fraternidade
Data 11/04/2008 04:10:27 | Tópico: Contos
| _ E agora, Rick? Como é que a gente sai daqui? O Maverick patinava, urrava, derrapava no barro. O vidro ainda embaçado pela respiração quente de há pouco e a mata espessa não deixavam ver de que lado brilhava as luzes da cidade. O susto não deixava sombra dos tórridos momentos vividos ali. Haviam saído já há tempo e precisavam voltar rápido ou não teriam o álibe da missa das 7:00h. Foi então que Rick, aflito e definitivamente convencido de que nada tiraria o carro dali, teve uma idéia. O negócio era pôr o pé na estrada. Na cidade, cada um para o seu lado e a sua idéia tomaria forma. _ Maldito salto! Enterra no barro e não me deixa andar direito! _ Tira o sapato, tonta! Onde já se viu querer bancar a madame nessa biboca! Só você! Assim foram jogando barro no romantismo de minutos atrás. Trocavam farpas na sinuosidade do caminho, no sem jeito da situação e na loucura de contar apenas com o tempo da missa. O carro foi amaldiçoado, humilhado, magoando os brios do capataz. _ E você que anda a pé? Melhor ter o “tufão” que andar de ônibus que nem você! Enfim, chegaram a Batatais. Passaram pelo Pau do Urubu e viram os homens já batendo ponto nos botecos, jogando snooker e conversa fora, a padaria vazia onde a moça debruçava desanimada no balcão, o burburinho dos moleques jogando bola no ginásio do bairro. _ Agora é melhor eu ir por baixo e você seguir pelo centro, assim ninguém desconfia. Ela foi em frente, e ele virou na avenida da delegacia. Parou na balaustra de cimento e repetiu mentalmente tudo que ia dizer. Ia dar certo, pensou... Entrou. Demonstrava cansaço e o suor escorria pelo rosto e pelo corpo deixando duas enormes manchas redondas em baixo dos braços da camisa vermelha. _ Boa noite! _ É. O que é que manda? _ O delegado está? Eu vim prestar queixa; roubaram o meu carro. _ Ele volta logo do jantar, mas pode ser comigo mesmo. Afastou a cadeira tosca e sebosa em que estava, destacou de um bloco um papel, procurou por todo lado uma caneta. Nada! _ Você tem uma caneta aí? Essa delegacia parece um poço, tudo que é caneta some como se aqui tivesse um buraco negro! Rick coçou o bolso da camisa e da calça: _ Ah, deixei no carro a caneta... O investigador olhou firme para ele e voltou a procurar uma caneta. _ Nó tamos fú aqui, nem caneta o governo dá pra gente poder trabalhar. Até o papel higiênico eu tô trazendo de casa, acredita? Andou pelo corredor até a sala do delegado e finalmente voltou com uma caneta. Rick esperava tentando aparentar indignação. _ Não acredito que roubaram o meu tufão, cara! Que desgraça! O escrivão espetou a caneta na dobra da orelha, sentou na máquina de escrever, rodou o papel na bobina que fazia um barulho de matraca e começou a preencher o B.O. _ Como é seu nome? _ Ricardo Pereira Silva. _ Endereço. _ Eu moro no Vichi; Rua Diogo Asdrúbal, número 129, casa 2. _ CIC e RG. _ Estão aqui ó. _ Profissão? _ Eu cuido dos cavalos de corrida da fazenda do Vininha Guerra. Sou capataz lá. Marca do carro? _ Maverick, ano 72, amarelo e preto. Duas portas, olha o documento aqui... _Hum... _ Alguma coisa diferente no carro, uma particularidade? _ Tem um amassado na porta da direita e está sem pintura na trazeira, só na massa plástica. A máquina de escrever Olivette continuava estalando cadenciada... _ Certo. _ Onde é que roubaram o carro? _ Perto do Posto São Paulo, eu parei lá para pegar um vídeo para assistir com a esposa; até peguei um filmão e quando voltei já tinha sumido o carro. _ Tinha alguém com você? _ Nããão, eu estava sozinho mesmo. _ Quem mais viu você lá? _ Ah... isso eu não sei não... _ Que hora que era? _ Era mais ou menos 20:30h. Nesse momento o delegado chegou. Arrastava cansado o bico da botina Jardinópolis, suarento, calça volteando a barriga enorme e a camisa desabotoada até o peito, deixando ver além do tufo negro de pelos, um cordão de ouro grosso com um Jesus Cristo pendendo do peito gordo. _ Boa noite! _ Boa noite, doutor. _ Que é que foi agora, Jasão? _ O moço aqui, veio dar queixa do carro roubado. _ É? O tom de voz enfastiada saia sem vontade nenhuma de resposta. Rick então se animou a continuar a breve explicação do escrivão: _ Então doutor, roubaram o meu carro lá no posto São Paulo e eu vim aqui para dar queixa. Entrei na locadora do Aguinaldo e quando voltei para ir para casa, nem sombra do carro! _ Jasão, a viatura está na rua? Manda um rádio para o Zé Patrola dar uma olhada por lá. Jasão parou a datilografia sincopada e passou o rádio: _ Atento Zé, atento Zé... _ Positivo, operante! _ Zé, dá um pulo lá no posto São Paulo, furtaram um mavericão amarelo lá, verifica. Pergunta se por aí alguém viu o Rick do Vininha no posto ou na locadora. _ Positivo. O delegado então puxou conversa. _ É, nem em cidade pequena a gente tem sossego mais! Antes isso era coisa só de cidade grande! Então, doutor... Dez minutos depois, o Zé Patrola chama: _ Atento Jasão, atento Jasão, você está copiando bem? _ Fala Zé! _ Diz para o doutor delegado que eu estou com a viatura aqui no posto. Fui até a locadora, mas eles não abriram hoje. Aqui o Tonim frentista falou que não viu o Rick hoje não, mas lembra de ele ter abastecido o carro hoje na hora do almoço. Copiou Jasão? O escrivão nem precisou chamar o delegado, pois ele havia ouvido tudo! O bacharel pigarreou, meneou com a cabeça para que Rick o acompanhasse até a sua sala... Chamou Jasão também. _ ÔÔÔ seo Ricardo, (olhou o boletim de ocorrências e continuou): Ô seo Ricardo Pereira Silva, o senhor está querendo brincar comigo é? Vamos começar de novo a história e agora o senhor vai contar direitinho, lembrando tudinho, não vai? O tom ameaçador fez Rick engolir duro, uma saliva seca que descia como um tijolo goela abaixo... _ É melhor lembrar como foi rapaz, ou perco a paciência num instante... _ Foi do jeito que falei doutor, eu juro! O delegado percebeu que não havia mais a mesma convicção de antes na voz de Rick : _ Olha aqui seu Ricardo, é melhor pensar bem e contar de novo o caso. Fale com calma e cuidado, não tenho tempo para mentirosos! Olhou para Jasão que parecia rir de canto de boca e disse em voz de impaciência: _ Cada uma que me sobra... Essa hora da noite e eu aqui ouvindo essas... _ Vamos lá seu Ricardo, começa! Rick torna a engolir seco, passa a mão pelo rosto, e diz: _ Sabe doutor, eu contei tudo certinho, só que o carro não estava bem-bem dentro do posto não, estava meio longe, em frente da pastelaria do Zezo, do outro lado da rua. De verdade eu vi mesmo que o Aguinaldo estava com a locadora fechada, eu desci, tomei uma cerveja e quando pensei de ir embora, cadê o carro! _ Que horas foi isso, seu Ricardo? _ Ah...foi às 19:15h mais ou menos, doutor. _ Chama de novo o Zé Patrola, Jasão. _ Atento Zé, atento Zé. O doutor pediu par você verificar na pastelaria do Zezo se alguém sabe alguma coisa sobre um furto de veículo: o Maverick do Rick. Desligou e começo a rir: _ Não é que rima doutor? Quando Rick esboçou um sorriso amarelo, pensando que a tensão estava sendo aliviada, ouviu o berro do delegado impaciente: _ Se acha engraçado, seu Ricardo, ainda não viu nada. Engraçado vai ser o senhor passar a noite no xadrez! Rick estremeceu... _ Doutor, eu só vim aqui dar queixa do carro, sou um cidadão honesto. Trabalho duro e tenho família. _ Atento Jasão, atento Jasão! _ Estou aqui com o Zezo. Ele disse que não viu o Rick na pastelaria hoje e que ninguém viu movimento nenhum de carro roubado. Aliás, Jasão, diz para o doutor delegado que não dá para estacionar aqui em frente hoje, estão mexendo no esgoto, uma buraqueira só! _ Positivo Zé. Cambio final, desligo. As ventas do delegado estavam como foles: abriam e fechavam sem parar. Uma coloração vermelho-fogo tingia a sua cara redonda e os olhos fulminavam Rick. _ Tá certo seo delegado, eu conto a verdade, não fica nervoso não... _ Se não quiser apanhar, vai abrindo a boca, safado! Rick então, sem alternativa, contou do carro atolado e da situação difícil em que se achava com a cunhada. _ Pois então armou tudo isso só para limpar a barra, não é? Fique sabendo que sem-vergonha aqui não tem vez não! _ Jasão, liga para a pobre mulher desse infeliz, manda ela vir para cá. _ Não faz isso não, delegado! _ O senhor, seo Ricardo, aguarde aí sentadinho e de bico calado. Luzia demorou uma meia hora e apareceu assustada na porta do plantão policial. Estava lívida... _ Nossa Senhora da Abadia, Rick, o que foi que aconteceu? O delegado então, tomando a iniciativa do prosa, contou em detalhes para Luzia o que havia sucedido. Da traição do marido, do carro no matagal, do plano todo engendrado por Rick, e principalmente quem era a companhia do marido no momento do “roubo”; a irmã dela. Luzia ouviu tudo, cabeça baixa, pensativa... _ Bom dona Luzia, agora é com a senhora! Saiu da sala e deixou os dois sozinhos: Rick e Luzia. Lá fora o delegado e Jasão apostaram num “barraco”. _ Eu acho que ela bate nele, disse Jasão sorrindo. _ Eu também, disse o delegado. _ E é bem feito, safado... Na sala, nem um piu se ouvia, nada! Um silêncio de morte... Depois de alguns minutos, ouve-se o arrastar de cadeiras. Luzia pega a bolsa, e diz em tom impositivo: _ Vamos Rick! Atravessou o corredor, parou em frente do delegado e do Jasão e falou com calma: _ Nós podemos ir embora, delegado? _ Pode e nunca mais apronte outra dessas, seo Ricardo! _ Nós vamos indo então. E continuou: _ Em casa eu converso com ele. Estou chateada com a mentira e a dor de cabeça que ele deu para o senhor! Peço desculpas pelo incomodo... _ Ele não devia ter feito isso não, eu nunca achei que ele iria arrumar outra mulher, é um paspalho; mas já que arrumou ainda bem que é da família!
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