
XX
Data 28/06/2018 01:33:56 | Tópico: Poemas
| XX
Hoje não chove porque é Verão. Caiem-se em mim as dores do mundo Que eu finjo já não ter; E há sombra da noite Iluminado à ponta do cigarro Vejo os carros passar, Chapinhando com as rodas no piso molhado. É 1922, e eu não sei o que aconteceu ontem, Porque é de madrugada e ainda não saiu o jornal; Estou encostado a uma árvore desta cidade Em que julgo viver. Escrevo de pé para cair Pela tinta deixada no papel. Não tenho frio. Porque é verão e não chove Estou agasalhado, para não ficar constipado, Se o tempo mudar Assim de repente. Aqui não passa gente, Já dormem, e eu aqui a fumar. Não consigo dormir, Quando fecho os olhos Fico tão só, só comigo para falar. Não gosto de mim, vou ser sincero Sou um tipo estranho Que não pára de falar. Verdadeiro, pelo menos, assim o espero…
Mas não gosto de mim! Ninguém me pode obrigar, Nem mesmo as minhas obrigações. Fachadas dirão alguns ao ler, Num prédio que ruiu Sem preocupações, E metáforas a fazer. Deixo cair o último pedaço de cinza E já tenho outro cigarro à boca; Já não me apetece mais, Mas ajuda a iluminar o papel E o caminho às palavras Que tropeçam no tédio de mim Já estou cansado, mas não tenho sono Já estou entediado, mas em que posição me ponho? Quero escrever, E largar à tinta pedaços de mim Matar-me, reinventar-me, Deixar-me apodrecido no papel Para que não cheire mal E safar-me, sem ficar igual, ao que fui A vida tem contornos engraçados, Desafios desvairados, Leva aos cornos desgraçados, Calafrios disfarçados. Tenho à palma da mão Controlo sobre coisa nenhuma.
É verão, mas não chove; Nem eu estou na rua, Estou quieto e sentado De alma nua A escrever o que ninguém Na gargalhada em que me dou Doem-me as costas e partes da vida Está toda partida E não sei em que ponta lhe pegar….
|
|