
CORDEL DA LUA DE SANGUE E DO SOL ENCARNADO
Data 02/06/2018 15:41:36 | Tópico: Poemas
| CORDEL DA LUA DE SANGUE E DO SOL ENCARNADO
Primeira Parte: AO POENTE
Desde o tempo dos antigos Estes dois arqui-inimigos Se veem no céu face a face. Tinham os olhos sangrando Ao longo de longo impasse, Soltando, sem que findasse, Faíscas de quando em quando...
Era o sol em agonia. Era a lua em pleno dia. Era ele o sol encarnado. Era ela a lua de sangue!... Eram os dois lado a lado: Ele, rubro e envergonhado; Ela, 'inda pálida e exangue.
O sol, ferido ao declínio, Um firmamento sanguíneo Deixa após si n'Ocidente. Já a lua, vespertina, Surgia em quarto crescente, A luzir quase ao poente Face ao sol e sua sina.
Como acontece há milênios Pelos celestes proscênios, Sucedia a lua ao sol. D'esta feita, todavia, Depois do rubro arrebol Passando à cheia (um farol!) Diversa se prometia...
Segundo efemeridades, Estas astrais potestades Transitam bem regulares Quando vistas cá da Terra: Têm das luzes estelares Certas datas e lugares, Que de cada eclipse encerra.
N'aquela noite, portanto, Para universal espanto Mais um eclipse lunar Estava escrito no quadro: Havia-de se ocultar A lua, até s'escutar Mais alto de cães o ladro.
Com efeito, a lua cheia Às imensidões clareia Enluarando a cordilheira! Pois, finda a fase crescente, A lua se mostra inteira Ao dominar, altaneira, A noite resplandecente.
Pouco a pouco, todavia, A sombra da Terra havia- De lhe ocultar toda a face. E o luar obscurecido Avermelha-se fugace, Tornando-se ao desenlace Rubra qual sangue vertido!...
* * *
Segunda Parte: PROSÉLITOS
Contudo, por toda parte E com toda a espécie d'arte S'elevaram muitas vozes De líderes religiosos, Que com libelos ferozes Arvoraram-se os algozes Dos erros pecaminosos.
Como se o braço de Deus, Espevitavam os seus Com ardor contra os demais, Porquanto o mal manifesto... Corrompida a Humanidade, Eram eles, na verdade, Dos homens santos um resto.
Arrastavam multidões Com extensas pregações A relembrar profecias D'esses eventos finais. Afirmando em bizarrias Ser aquele o fim dos dias Face aos bíblicos sinais.
Havia, de facto, a imagem — Livro de Joel, passagem Dos oráculos do Senhor — Contando antiga visão: — “Eis que um sol já sem ardor Cede no céu seu fulgor À mais plena escuridão
No lugar, tão-só a lua Sem estrelas continua Reluziria, contudo, Plena e sanguínea no céu. Indicando o fim de tudo, Onde crentes sobretudo Veem a desdita do infiel!...”
Creem que Joel descreveu, Que a lua em seu apogeu Será sanguínea também E aos céus não mais deixaria! Somente um resto, porém, Reunido em Jerusalém Com fé sobreviveria.
Os mais, perdidos nas trevas, Co'as suas paixões malevas Vendo os crentes verdadeiros Livres de tão triste sorte. Onde desastres inteiros E, ao fim, quatro cavaleiros: Peste, guerra, fome e morte.
Após a última trombeta, A cristandade completa Veria o instante esperado. Só então, o crente fiel Com Jesus ressuscitado É também arrebatado Para ir ter com Deus no céu.
Aos que ficam — dizem eles — Resta a mesma a vida reles: O mundo em sua injustiça Permanece sem final. Pois, onde o pecado viça Na luxúria e na cobiça Continua tudo igual!
A leituras desonestas E tão obtusas quanto estas É difícil contrapor, Enfim, o que quer que seja. Se, para meu estupor, Confundir mediante o horror No fundo é o que deseja.
— "Tendo fé como argumento, A verdade é treinamento!" — Eis como por circunstância Um intolerante ensina A sua própria intolerância Àqueles que com grande ânsia Lhe observam a disciplina...
Qualquer frase repetida — Quer banal ou esclarecida — Dogma virava em seus lábios!... Clamando em nome de Deus Contra islamitas arábios, Cientistas, artistas, sábios E seculares ateus.
Tenho claro que tais falas Ecoando por amplas salas Tocam muitos corações. Mas são mais sobre política Do que sobre religiões: A estes extensos sermões Sempre falta autocrítica!
E tais mensagens pastoras, — Autolegitimadoras!... — Têm em comum entre si O senso de que a Verdade É a mesma aqui e ali, Reluzindo igual rubi Para toda a Humanidade.
Em discussões cheias de nada Tão-somente confirmada A doutrina em seus enigmas Deve ser por seus doutores... Se, entre dogmas e querigmas, De Jesus vendo os estigmas Vêm celebrar-lhe louvores.
Assim, condenam o mundo E o descrevem moribundo À espera de seu final. Em tudo vendo prodígios, Já creem do bem contra o mal A lua em sangue um sinal Após guerras e litígios.
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Terceira Parte: EM NARRATIVA
De que servem os artistas Os poetas, os romancistas E os contadores de histórias, Senão com vilões e heróis Ter inventadas memórias?... E ir das contendas às glórias Entre eclipses e arrebóis!...
Historiar é encontrar Onde os actos têm lugar E onde o herói se movimenta Em plena metamorfose: Muito sofre, pena, tenta, Perde, ganha, luta e enfrenta Até a sua apoteose!...
Há-que pôr em narrativa Quanto bem ou mal se viva: Ver o que, como, quando e onde... Em tempo e espaço cobertos, Às vastas questões responde Ao dispor o que s'esconde Como se livros abertos.
Carece que o bom enredo Surpreenda — quer triste ou ledo — Pois história bem contada É a que do início ao fim Lê-se a varar madrugada, Mantendo a mente encantada Como fosse mesmo assim.
E que cada personagem Nos traga alguma mensagem Do que seja estar e ser. E de tanta humanidade Se lhe possa perceber, Em cada lance a vencer Por fim, a sua verdade.
Lua e sol ponho em cordel Para um eclipse no céu, Além de nos encantar, Iluminar nossas vidas. E ‘inda desmistificar Lendas que tomam lugar De verdades bem sabidas.
Mas compete ao narrador Falsos profetas expor Para no fim demonstrar O quão vagos e inexactos, Que vendo o agouro falhar São capazes de afirmar Errados serem os factos!
Se arautos do fim do mundo Põem sementes no fecundo Chão da esperança humana, Venha a poesia e conteste Quem à fé alheia engana E às profecias profana, Torcendo as luzes do Agreste.
Quem quiser manipular A fé do povo em lugar De se procurar respostas, Tenha ao menos a visão De que verdades impostas Por religiões, são apostas; Apenas outra opinião.
Pois Deus mesmo ninguém viu E da morte não se ouviu Qualquer palavra de volta: Tudo é especulação!... Sem mais, fica só revolta Ou lamento que nos solta Por angústia o coração.
Já depois do fim do mundo — Ou da morte — n’um segundo Tudo deixará de ser. Portanto, o que quer que seja Não se finja mais saber Que os demais pelo poder De impor-lhes quanto deseja!
Quer d'aqui ou de nenhures Aonde algures e alhures Nos leva a imaginação, A história nos transporte Pelas voltas da ficção Com razão mais emoção Para além de vida e morte.
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Quarta Parte: O SOL ENCARNADO
Cor de carne em chaga viva, O sol a morrer reaviva A beleza aos olhos meus. Eu, embora embevecido, Reflito que existe Deus Diante de prodígios Seus Como o sol entardecido.
Sim, se há Deus é na beleza Do esplendor da Natureza E em nossos olhos a vê-la. O mais, é vontade humana De ver na encarnada estrela Mais do que uma coisa bela Outro deus no qual s’engana...
Ou pior, cego à maravilha D’ela faz outra partilha Que confirma as Escrituras... E, arvorando-se profeta, Com tenebrosas figuras Exorta às demais criaturas A vida que acha correta.
Entrementes, ele mesmo Vocifera culpas a esmo Sem mover seu próprio jugo! Fala em nome do Senhor, Mas não passa de refugo: Se d’outros juiz e verdugo De si grande absolvedor...
Se há Deus é porque no céu O sol despede-se fiel A cada dia que passa. E vê-lo partir traz paz, Maravilhamento e graça Mesmo qu'ele nada faça Além de pôr-se lilás.
E depois, lento desdouro Como se perdesse o tesouro Que espalhou no firmamento. Mas, enquanto empalidece, Um céu de melancolia: Anoitecendo em poesia, Outra hora azul oferece...
Mas se há Deus é simplesmente Por estar aqui presente O mundo inteiro comigo. Não entendo santidade Obcecada co'o perigo De cair frente ao inimigo, Que também Humanidade.
Os conflitos são História, Onde até grande vitória Logo passa por derrota: Quem é um vencedor hoje Nem será digno de nota Se então por terra remota Amanhã ou depois foge...
Se há Deus é que estou vivo E, nem humilde nem altivo, Eu me ponho em frente ao sol. E, até o vir encarnado S'espalhar pelo arrebol, Paro para o pôr-do-sol, Sem já futuro ou passado.
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Quinta Parte: A LUA DE SANGUE
Havendo Deus ou não, eu Vi quando o sol s’escondeu E a lua cresceu no céu. Quando plena, todavia, Sangrou por sobre o papel Até se tornar cordel E resplender em poesia:
A lua à sombra da Terra Sumia como se a guerra Que tem co’o sol a cortasse E, ao fim, a ocultasse inteira. De facto, quem ora olhasse Mais e mais obscura a face Veria d’esta maneira.
Mas quando escura de vez, Ao invés de sumir, talvez Quisesse o sol lhe sangrar Tal como fora sangrado. Assim, n’esta hora e lugar, Soube à lua o sol mudar Com seu rubor encarnado.
Plena noite, a lua plena Deixa d’enluarar serena Pelos céus da minha terra, Para sangrar d’encarnado Feito o sol que se desterra Ao se pôr de trás da serra Depois do dia acabado.
Porém, além da beleza — E, sobretudo, rareza — Nada sobrenatural: A lua volta da sombra... Como antes, clareia igual! Sem vir Juízo Final, O eclipse já não assombra.
Não que não houvesse guerra Ou peste e fome na Terra, Além de grandes tragédias, — Quer naturais ou nem tanto... — Mas nada acima das médias A grafar enciclopédias Com mais verbetes de espanto.
Não houve o que estava escrito; Nenhum poder infinito Perseguiu os cristãos justos. Tampouco arrebatamentos Ou outros eventos robustos A deflagrar entre sustos Finais acontecimentos.
O que houve foi outro dia Com a sua travessia Para o crente e para o ateu. Nada novo se contou... Nada novo s'escreveu... Pois tudo isto aconteceu E o mundo não se acabou.
Betim - 02 06 2018
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