
DONA BLANCA, RAINHA – a mula sem cabeça
Data 10/07/2015 20:38:49 | Tópico: Épicos
| DONA BLANCA, RAINHA – a mula sem cabeça
introito I
Embora muitos já tenham Se dedicado a escrever Sobre a mula antes mulher... E outros mais ainda venham Fazê-lo por mais saber...
II
Talvez tenha algo a dizer E eu dizendo alguém escreva Inclusive o que não deva Sob pena de se esquecer Alguma moral coeva.
III
Quando se trova na treva, Eis que o silêncio revela Diante de íntima procela: “Da vida nada se leva, Sequer a memória d’ela…”.
IV
Não leva aquele que vela Nem mesmo a angústia das preces Como na incerteza d'esses Que semeando sem estrela Perdem o tempo das messes.
V
Sim, vão cuidar de benesses... Pois, por trás das causas nobres, Há sempre as causas dos nobres. Ou melhor, seus interesses... E arcas cheias d'ouros e cobres!
VI
Se todos, ricos ou pobres, Vivendo vida ilusória De que serve querer glória? Enfim, por quem soam os dobres Da existência meritória? ...
o desencantado
VII
Fica, de infeliz memória, O infante que evocarei Por tudo que sou e sei... Lembrarão a triste história Do que chamaram d’El-Rey:
VIII
-- "Fiquem os erros que errei... Porquês de porque tão triste... E minha mirada que insiste, Face àquela que tanto amei, Mesmo que o tempo já diste."
IX
"Recitem, de dedo em riste, Os versos duros que cismo Em balde, defronte ao abismo, Sobre o bem e o mal que existe À espera d’um cataclismo."
X
"Entre esse e o próximo sismo, Preparado para o pior Seja mais conhecedor Dos extremos do egoísmo Nas desventuras do amor."
XI
"Visto que, em face da dor, Boas razões todos têm, Um monstro, a sua também Mesmo que ele cause horror A vitimar outros cem.."
XII
"Ser gentil quando convém, Mas cruel de perverso dom, É ser mau: Mesmo que o tom Da voz dissimule bem, Nunca diz nada de bom…"
XIII
"Como o mais horrendo som Pôde vir d'uns lábios belos? Meus mais profundos anelos Malbaratou junto com Coroa, escudos, castelos..."
XIV
"Desgostos e desmazelos Têm me corroído a entranha Desde que a terrível sanha: Vi no pior dos pesadelos A mudança crua e estranha..."
a rainha amaldiçoada
XV
Foi n’um dos reinos d’Espanha Pelas brumas do medievo Aquando de régio enlevo Houvera cousa tamanha Que recordar mal me atrevo:
XVI
Era infante e após, longevo, O rei que sombrio enfrenta Essa lembrança violenta D’onde o remorso malevo Tantos anos lhe atormenta.
XVII
A consorte fria e cruenta Às voltas com sortilégios Nega sempre os beijos régios... E, entre esquiva e desatenta, Cuida de seus privilégios.
XVIII
Entretanto, sacrilégios Perpetrava com loucura Pela noite mais escura. À maneira de aquilégios, Mas sondando sepultura...
XIX
Dia seguinte, ela figura Pelo castelo, tristonha. Crendo real quanto sonha, Em alheamento procura Dissipar a hora medonha.
XX
Mas não há quem lhe disponha: --”Findo o riso, mudo o canto!-- Diz ela, queda em quebranto... Os pingos nos ís se ponha Face ao terrível encanto.
XXI
--”Por que ainda sofro tanto? Mais que triste a minha sorte! Não que alguém aqui se importe, Mas, ao menos por enquanto, Para o amor, antes a morte.”
XXII
“Ou então meu tonto consorte! Rondando-me os olhos vis, Por mais e mais infeliz…”-- Mantendo seu nobre porte, Um outro tanto maldiz:
XXIII
“Suporto-lhe ardor e ardis: Ele exige um beijo, eu nego! Quer me abraçar? Não me entrego! Mas cerca-me de imbecis Sem nunca me dar sossego…”
XXIV
“Sem embargo, quando chego Ai de mim, ele me segue... Malgrado mais eu me negue, Insiste com seu chamego... Antes fosse amar um jegue!
XXV
“O tonto, ele antes se esfregue Nos andrajos d’um mendigo, A tentar deitar comigo! Vá ao diabo que o carregue E esse amor leve consigo!”
XXVI
Chegando junto ao jazigo Onde enterram uma criança… Tão longa e só sua andança Que retorna ao hábito antigo De esperar sem esperança.
XXVII
Logo lhe vem à lembrança A maldição repetida: Sétima filha seguida, Recebe por triste herança Estranha forma de vida.
XXVIII
Vive de si esquecida Certa que a qualquer momento Viverá o encantamento. Pelo qual desde nascida Ela espera um livramento.
XXIX
Porém, firma insano intento Ao lançar mão de magia, Crédula que o conseguia Com feitiços ao relento Nas névoas da noite fria.
XXX
E, assim, prevaleceria Sobre o mal com um mal maior. Decidida a fazer pior Que tudo que se conhecia Em acto de extremo horror! XXXI
Evoca com todo ardor As obscuras potestades, Cujas imundas vontades Induziram-na ao terror Das ocultas realidades.
XXXII
Submissa a tais entidades, Arvora-se feiticeira E igual fera carniceira Ela usa de atrocidades Nas noites de quinta-feira.
XXXIII
Ultrapassada a fronteira Entre a luz e a escuridão. Seu confuso coração Entrega-se à derradeira Das obras de perdição.
no soflagrante
XXXIV
Alta noite volta então À campa do cemitério Onde, de semblante sério, Antes, defronte ao caixão Dera a uma mãe refrigério...
XXXV
A rainha, no seu mistério, Logo o caixão desenterra E àquele corpo se aferra! Devora-o, n'um transe etéreo, Com todo o mal que isso encerra.
XXXVI
Mas, enlouquecido, berra O rei, que oculto no breu, A surpreende já sandeu. E juntos, caindo por terra, Se entreolham para horror seu...
XXXVII
Diante do que aconteceu, Ouviram n’esse instante Um relincho lancinante! Algo que nunca se esqueceu E nem se soube o bastante.
a transformação
XXXVIII
Assim, d’ali sai errante A semelhante às jumentas: Solta fogo pelas ventas Com suspirar ofegante Em cavalgadas violentas.
XXXIX
Tem o clarão das tormentas Mas a cabeça invisível… Que embora pouco plausível, Corre as estradas poeirentas Até o intransponível.
XL
Sem embargo, algo terrível Atravessa horas vazias... Longas sete freguesias Galopava a mais temível Das sós fantasmagorias.
XLI
Para além das fantasias, Falam do estranho perfil. Tem sempre quem diz-que viu, Fazendo más correrias Pelos sertões do Brasil.
XLII
E pensar que era infantil O temor d’aquela infanta… Tentando agir, agiganta O mal que sempre serviu Sob sua púrpura manta.
XLIII
Por fim, a mais sacripanta D’entre todas as pessoas Por incapaz de obras boas... Visto que a não desencanta A récita d’outras loas.
XLIV
Perdendo as duas coroas, Toda ao mal foi se entregar. Com noturno cavalgar, Deixa Madris e Lisboas Para distante lugar.
XLV
Nos confins onde foi dar A acreditam concubina D’algum padre cuja sina É os sertões assombrar Até à luz matutina.
XVLI
Noite após noite, a mofina Relinchava umas mil vezes! Perpetrando estupidezes, Colina atrás de colina, Ia espalhar longe as reses.
XVLII
Desaparece por meses Mas volta sempre, certinha, Quando novembro avizinha. Qual dizem nos entremezes: “Anda solta uma burrinha…”
os sertanejos
XVLIII
Mas aquela terra tinha, Gente audaz e valorosa. Ouvindo essa antiga prosa Decide lhe ir, fosse ex-rainha Ou mesmo de padre esposa.
XLIX
Esperto que nem raposa É de todos conhecido... Tão sábio quanto sabido, Um sertanejo que goza Da fama de destemido.
L
Diz-que é facto vero e havido Que sangrando o lobisomem Ele tornava a ser homem Como não tivesse sido Animal que jamais domem:
fanfarronadas
LI
-- "Ainda que grande o tomem É coisa bem admirável Que deixe de ser intocável Enquanto bebem ou comem Ficando assim vulnerável."
LII
"E de modo comparável Também esse burro acéfalo, Como Alexandre ao Bucéfalo, Eu montarei memorável Co'a força apenas do encéfalo!"
LIII
"Não é nenhum heptacéfalo... Ao contrário, p'ra matança Sem a cabeça se lança! Caçam-no que nem alcélafo: Na galopeira se cansa...
LIV
Se lhe sangrar, logo amansa!" -- Diz, todo metido à rábula E deitou a contar fábula Dos doze pares de França Aos cavaleiros da tábula...
LV
Com tanta conversa pábula E extrema fanfarronice, Narrava um disse-me-disse, Descrevendo outra parábola À beira já da sandice...
LVI
Quem por acaso o assistisse Ali, na praça da igreja, Irrefreável já deseja Deixar a pacata mesmice E ir aonde a mula esteja.
o entrevero
LVII
E se assim for, assim seja: Foram em rancho ao contacto Onde, de vera e de facto, Mula sem cabeça veja, Encarando-a estupefacto.
LVIII
Diante da grandeza do acto, Toda a alimária da tropa Bem ajaezada galopa Para destino inexacto, Quando com rastro se topa...
LIX
Estava ali sob a copa De paineira barriguda: A marca profunda e aguda D’um coice dado à cachopa Cortando moita de arruda.
LX
O mistério se desnuda Logo que a escuridão cai: Alto relincho lhe trai E em trote forte a cascuda Das brenhas da mata sai.
LXI
Cerca e grita: --”Avançai!”-- Se aproximando de roda Aquela gentalha toda, De lanças em punho, vai Lhe cutucar sua coda.
LXII
Um, uma embira enoda, Outra laçada tentando... Muito se admiraram quando O laço fechou em roda Quase o pescoço enforcando.
LXIII
"Tem cabeça!"-- Saem gritando -- "A gente apenas não vê! ..." De facto, isso foi mercê Àquele rosto nefando Que amaldiçoado se crê.
LXIV
Logo entenderam porquê: Vendo em seu rosto a desgraça, Essa maldição se passa... N'um olhar que acaso dê A mula que ali se caça.
LXV
Assim, a embira que a enlaça Faz com que enfim apareça A sua horrível cabeça Cujo olhar feroz de ameaça Os faz recuar bem depressa.
LXVI
Porém, lembrando a promessa Que o sangue finda o feitiço, Outro lhe finca o roliço E corre a sangria espessa Pondo fim ao rebuliço.
LXVII
Pouco depois de tudo isso Viram arfar o animal Que de modo espiritual. Como mulher cheia de viço Torna à forma original.
LXVIII
D'uma beleza sem igual E ultramarina mirada Não tem lembrança de nada Esquecida já do mal E da vida enfeitiçada.
epílogo
LXIX
Cumprida toda jornada Resta, portanto e por fim, Concluir, de mim para mim Toda uma vida passada Entre horas tristes assim.
LXX
De horas bem tristes sim, Cuja graça é esquecer... Exacto por não saber Aonde que chega, enfim, Quem nunca soube viver.
LXXI Tomar tenência é mister Antes que se acabe o mundo... Porque a existência, no fundo, É poesia a se escrever De dentro d’um eu-profundo.
LXXII
Pois todo o verso é oriundo Dos sonhos de não dormir. Possa eu saber no porvir Não me angustiar pelo imundo, Malgrado o entenda existir.
LXXIII
Possa algum bem d'isso vir E seja capaz da dor Quem, contudo, sonhador Observava a noite cair, Após o sol ir se pôr.
Belo Horizonte - 05 05 2011
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