
À Sorte do Tempo
Data 09/03/2015 20:21:33 | Tópico: Poemas
| À Sorte do Tempo
[[A criação nasceu do tédio. Um pequeno menino – poderoso o suficiente Cansou-se da solidão eterna E criou-nos para divertir-se [Dizem uns que para amar-nos]]]
I
Eu não colhi os girassóis cor-de-gema Nem corri os campos eternos e milharais Não beijei a mais bela moça da vila Ou pedi-a em casamento Quase nada fiz, e quase tudo há que se fazer E eu, parado, olho para mim mesmo e digo: Falácia!
Não corri os campos de Dublin Nem chorei ao som do sussurro dos ventos Não atendi ao chamado à minha alma Tudo do meu legado são lamentos Lamentosos sonhos do frio do inverno
Eu não segurei a pequena mão dum filho Nem decidi chamá-lo Amadeu, Joaquim ou Mateus Nem o ensinei a equilibrar-se na bicicleta Não o vi deixar nossa casa, esboçando um desolado adeus Na ponta dos dedos...
Não, eu não hasteei a bandeira Nem com amor à minha terra servi Não é que me falhe a memória: É que tão poucas há, Que tenho medo de descobrir Que, enfim, não existi
II
A morte é uma mãe indesejada - Somos todos feitos de morte Só não há morte onde não há vida Do que fugimos, então?
É que temos medo, profundo e indizível medo Do regresso aos braços afáveis Daquele vazio eterno, sem sons, cheiros ou cores O exato vazio que conhecemos desde o início Mentira – Não conhecemos nada! Só há vida quando há sensação.
III
Vagueio por uma memória Como quem dá uma volta solitária Num fresco bairro duma noite de verão E faço o que faço nos sonhos: procuro pela casa O lar perdido dos contos, belos contos antigos O lugar que inspira poeta mais do que o faz o ópio
E, que são as memórias, senão bairros? Uns claros e infantis, Outros escuros, afastados, esquecidos Que é um homem se não o conjunto de suas memórias?
Sim, empenho-me na busca pelo lugar Gente amada espalhando-se pelos cômodos O cheiro – eterno cheiro do sabonete barato O antigo violão derramando acordes no início da noite... Memórias e presságios – pesares e amores sutis (Como quem ama secretamente o pudim e a calda E assalta secretamente a geladeira, na madrugada)
Memórias: facas de dois gumes – sem cabo Se não queres com elas cortar-se, não vivas
IV
Parece a mim que tenho cento e tantos anos Vejo-me perdido num mundo jovem e pueril Parece a mim que sou um estranho, velho estranho Esquecido neste mundo por pura negligência Forçado a assistir ao ininterrupto curso dos mundos Forçado à terrível sina humana: a impotência diante das coisas
V
Se não pude, ainda, desistir É que há laços que me erguem, tão sutis Como borboletas verdes – vestidas de esperança Que trazem nas asas o prelúdio das boas-novas Dos abraços nunca dados, dos ombros nunca cedidos Dos maus-amores prometendo reposição Como desistir diante de tudo? Como pode o pesar superar a beleza? Ah, na alma machucada, não há lógica nem cura O homem torna-se mais dilema Que o comum de sua própria natureza Os fins de tarde revitalizam-no e entristecem-no Perde-se entre dois mundos...
VI
Ainda não aprendi a dirigir Que lástima! Ah, que vacilo E tão fácil a mim parece A mão nas alavancas, o pé no acelerador Vrummmmm
Tomara que haja alguém Que queira ensinar-me
VII
Perdi meu espírito pairando Sobre umas águas cristalinas Não sei nem qual o país! Sei que o cheiro doce e meio frio Enchem-no os pulmões (E lá espírito tem pulmão!)
Perdi-o dentro duma canção Que dizia que, no final, O amor que levamos É igual ao amor que fazemos
Voa lá, vai E deixa o corpo cansado aqui Não desperta nunca mais! Vive a perenidade desses voos sutis Não desperta, que tudo aqui são limites! Voa teus voos sutis Que não há nada melhor no existir
VIII
Sabes quando despertas E és como a leveza do éter?
Já tentei descrevê-lo por verso, Prosa, ensaio e tratado... Nada!
Talvez haja algo mais, mesmo.
IX
Liberta-me da minha liberdade Dá-me as tuas mãos faltosas Desses anos todos Diz-me qualquer coisa de afeto...
Diz-me que não há pesar no viver Que as coisas hão de se resolver Que grandeza maior que o amor não há
Diz-me que o medo há de cessar As viagens serão constantes E haverá tempo pra contos e romances Poemas, cervejas e todo o mais
Volta no tempo e vai buscar-me Nas tardes amenas da escolinha E ouve-lhes as palavras das tias Ah, portou-se como um anjo!
Leva-me de volta para dois mil e um Praquele delicioso dia azulado Que, a mim parece, não terminou nunca E, a mim parece, haverá para todo o mais
Afagava-me os cabelos e fala Até que nos sonhos, por fim, eu caia Até que eu não tenha mais Medo de perder-me
Deixe-me ouvir-lhe o coração Porque, até onde sei Pode nem existir
X
A vida é um generoso dia Meu sol prepara-se para o poente A noite fria me espera [Mas, mesmo que pouca, Ainda lá há vida]
Entre correr, fazer as malas Martirizar-se, fingir calma e tranquilidade Entre viver vazio ou morrer de saudades Eu prefiro ir escrevendo...
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