
A Flor (Cora Coralina)
Data 21/04/2014 12:42:57 | Tópico: Poemas -> Dedicatória
|  Na haste hierática e vertical pompeia. Sobe para a luz e para o alto a flor...
Ainda não.
Veio de longe Muda viajeira dentro de um plástico esquecida. Nem cuidados dei à grande e rude matriz fecundada. Apanhada num monte de entulho de lixeira.
“Cebola brava” na botânica sapiente de seu Vicente. Oitenta e alguns avos de enxada e terra. Sabedoria agra. Afilhado do Padim Cícero. Menosprezo pelas “flores”: “De que val’isso?” Displicente, exato, irredutível.
E eu, meu Deus, extasiada, vendo, sentindo e acompanhando, fremente, aquela inesperada gestação.
– Um bulbo, tubérculo, célula de vida rejeitada, levada na hora certa à maternidade da terra.
A Flor...
Ainda não. Espátula. Botão hígido, encerrado, hermético, inviolado no seu mistério. Tenro vegetal, túmido de seiva. Promessa, encantamento. Folhas longas, espalmadas. Espadins verdes montando guarda.
A expectativa, o medo. Aquele caule frágil ser quebrado no escuro da noite. O vento, a chuva, o granizo. A irreverência gosmenta de um verme rastejante. O imprevisto atentado de alheia mão consciente ou não.
Alerta. Insone. Madrugadora.
Na manhã mal nascida, toda em rendas cor-de-rosa, túrgida de luz, ao sol rascante do meio-dia. No silêncio serenado da noite eu, partejando o nascer da flor, que ali vem na clausura uterina de um botão. Rombóide.
Para a Flor...
Chamei a tantos... Indiferentes, alheios, ninguém sentiu comigo o mistério daquela liturgia floral. Encerrada na custódia do botão, ela se enfeita para os esponsais do sol. Ela se penteia, se veste nupcial para o esplendor de sua efêmera vida vegetal.
Na minha aflita vigília pergunto: – De que cor será a flor?
Chamo e conclamo de alheias distâncias alheias sensibilidades. Ninguém responde. Ninguém sente comigo aquele mistério oculto aquele sortilégio a se quebrar.
Afinal a Flor...
Do conúbio místico da terra e do sol – a eclosão. Quatro lírios semi-abertos, apontando os pontos cardeais no ápice da haste. Vara florida de castidade santa. Cetro heráldico. Emblema litúrgico de algum príncipe profeta bíblico egresso das páginas sagradas do Livro dos Reis ou do Habacuc.
E foi assim que eu vi a flor.
Cora Coralina (1889-1985), poetisa goiana, In: Melhores poemas, 3ª edição. SP, Global, 2008, p. 313.
Imagem: Claude Monet - Nympheas blancs et jaunes, 1917 at Kunstmuseum Winterthur Switzerland .
|
|