
quatro sorrisos e um funeral
Data 19/03/2014 23:10:06 | Tópico: Crónicas
| O sino crepitou na torre anunciando a funesta notícia, ainda a manhã ia a meio na certeza de pensamentos amarfanhados pela madrugada- a chuva anunciava-se copiosamente, inclemente perante as orações a um Deus impiedoso. Os trovões desabavam abafando o sino tangente. As faíscas cortavam o céu trajado de azul de morte. O coveiro acercou-se do corpo numa perenidade absoluta, virou-o de barriga para cima, colocou o pendente da fita métrica na ponta das botas e desenrolou até ao topo da testa descoberta de cabelos e sulcada pelos quilómetros de arado em punho numa liturgia de movimentos ensaiados até à exaustão. Olhou para o rosto familiar e não conseguiu sentir pena tal como das outras vezes em que esticou a fita que mede o pranto alheio e o aconchega em tábuas sem sentimento. Era assim a modos que uma inevitabilidade inconsequente nas emoções de quem lida com a morte e que nem o cheiro a pinho desmoraliza. O padre recebeu a notícia e encomendou a sua alma a Deus num tom circunspecto de olhos dúbios como os vitrais da igreja que gere com arte e engenho nunca perdendo de vista a caixa de esmolas. A florista arrecadou as melhores rosas, crisântemos, jarros e cravos que encontrou, o magarefe de recados correu a colher as mimosas e verdes que encontrasse nas beiras do caminho, o tempo era de coroas que não de espinhos como o Cristo que endeusa, mas de flores tão viçosas como o morto quereria a sua seara em Maio de tardes quentes. Caía a tarde no dia seguinte e o féretro seguia o seu caminho, atrás os filhos de íris persianadas pelo sofrimento eloquente faziam contas aos hectares da quinta de terra teimosa, aradas sem fim e sem proveito por um teimoso que ia a enterrar e finalmente na morte via a sua vida a dar lucro…
|
|