
acordei
Data 02/04/2013 23:23:16 | Tópico: Poemas
| acordei e foi há menos de cinquenta anos meio século
mas tomei consciência
da minha condição de acordado há menos tempo
talvez uns trinta e poucos anos não mais do que isso
mas o ter consciência e o ter a veleidade de pensar que posso pensar e o ter a ousadia de escrever por julgar que há algo a dizer ao outro que tenho algo a dizer ao outro
isso bom isso é mui sério isso é quase convocar o ginsberg e gritar-lhe o seu uivo ou chamar o gullar e dizer-lhe que afinal há um poema que pelo menos se diz poema
o diz o poeta
mais sujo que o poema sujo que o gullar deixou no papel
este
volto a frisar
diz o poeta
não é sujo mas imundo mais do que imundo sórdido perdidamente sórdido
nasceu num bordel
na subcave que há na subcave de um qualquer bordel
do ventre da meretriz que sequer cobra o aluguer do corpo
fica por conta da conta da madame que lhe faz o favor o grande e enorme favor de lhe ofertar a cama e lhe levar os caralhos como canjinha de galinha que a invadem
quer queira quer não queira
os passos pelas escadas dizem que a puta
a mãe do poema
sequer vê
mas ver para quê de que vale ver com os tais olhos que a terra há muito já comeu
para morrer já o outro dizia basta estar vivo
e esta mãe
como tantas outras mães morreu com o próprio coração a bater com a respiração a desenhar o fole
acordei puta que pariu quem inventou a puta dos horários afixados em postes elevados à condição de coisa essencial à vida presos ao pulso reféns das máquinas que assim nos fazem crer repousam como bibelots nas mesinhas de cabeceira
mesinha que termo tão terno cabeceira que coisa mais bonita
em frente a cómoda sobre esta a maquilhagem da morte emoldurada
mas que como os galos que degolámos para deleite do estômago e dos ouvidos
confesse-se
nos gritam pela manhã os tais os tais os tais filhos da puta
tal como o poema dos horários coisa que nem o mais fino dos papéis higiénicos é capaz de limpar os vestígios
acordei e fui para o duche mas o duche não conduz para o ralo o horário antes me diz em seu cantar enquanto me massaja o lombo que há que ter calma que tudo retoma o seu ritmo normal natural
a seu tempo
mas o horário esse ri-se a bom rir que bem sabe que do poste que do pulso que da mesinha que da mente não se descola
acordei e já me barbeei que um homem nos tempos modernos tem que preservar a imagem tudo tudo tudo tudo tudo
e não esquecer
tudo tudo
e os sapatos que devem apresentar-se imaculados
como virgem em noite de núpcias não o noivo esse por conveniência de serviço deve ter rodagem suficiente tipo carro que provou do seu próprio motor
acordei mas será que acordei que não me ficou um resquício de sono de sonho de pesadelo de qualquer merda que me diga afinal alguma coisa para além dessas coisas que perduram nos postes nos pulsos mesas
digam há qualquer coisa por aí?
Xavier Zarco
|
|