
Perdido
Data 19/12/2012 00:49:30 | Tópico: Poemas
| Perdi-me na combustão do dia. Fui mosca tonta dos pés-sujos, Mariposa louca e incendiária, Sensualidade e ávida cupidez, Fastio feito de misoneísmo, Dias em que habitam tardes Quase mortas de passageiros sonolentos Nos bancos encardidos dos coletivos. Ah, se alguém gritasse... Ah, se alguém se incendiasse E se matasse e explodisse Uma bomba feita de sangue e dor De grito e pavor Ante as basílicas repletas de eco De cada coração! Ah! se alguém se sentasse ao meu lado, Ouvisse-me as queixas e alegrias, E acolhesse, em compaixão, Minhas inúteis solicitudes e favores...
Perdi-me no seio forte, No aroma doce e fétido, Bêbado do néctar suarento Que se escorre dos corpos da estiva, Do soro enjoativo Dos escritórios e repartições, Da fadiga odorífica das noites de verão, Dos pagodes incansáveis dos subúrbios. Perdi-me no seio da grande cidade Que grita contra si Na face muda e silente Dos que retornam do trabalho. Perdi-me com o peito arquejante, Com todos os sentidos e pensamentos alterados Em noite lúbrica de narcóticos. Perdi-me sexualmente, Com o beneplácito de Cristo, Sem raízes ou entendimento Na curva acentuada das estradas Da cidade mundial.
Transviei-me em suas luzes: Brilhei e me ofusquei entre vapores Expelidos por canos pretos De gargantas e escapamentos. Incendiei-me, louco, consumindo-me, Consumindo-te Nas sendas do fascínio e do tédio, Tonto da mesmice Das caras sufocadas dos bípedes enfadados A se rastejarem por concreto De vidas desprovidas de sopro animador. Perdi-me em mil cabeçadas, em milhares De lâmpadas, janelas, caras, Em quibes frios e enjoativos Para estômagos ulcerados. Perdi-me nalgum sexo doente, nalgum regato poluído, No quilômetro da saída anunciada, Mas lá só havia mais estrada, mais cidade.
Corri nu por vielas irreais, Desfraldei bandeiras, organizei comícios, Berrei no megafone, deitei na avenida Pela qual hoje passo mudo e depurado Por faixas, sinais, apitos e a moda. Quis atear fogo ao próprio corpo Para que minha miséria fosse uma tocha Na noite espectral desta cidade Feita de alarido e escuridão. Já quis muitas coisas, inclusive Que todos quisessem tanto quanto eu, Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro, Sob pancadas e coturnos... Mas só obtive a traição De quem nunca requereu minha fidelidade, O tumulto de uma multidão incompreensível Atropelando-me num tropel De concreto, asfalto, avenida, indústria e comércio. Tornaram-me um canalha sem sonhos Ou eu me tornei um E agora circulo por aí, desgarrado Nos refugos urbanos, Ostentando na estampa da camisa O rosto de Che Ao lado da menina que traz no peito Um I love New York Ou outra que vai pela pista De camisa vermelha com a foice e o martelo Sobre o seio esquerdo sem ser incomodada Na cidade capitalista!
Alguém pode me dizer Em que lâmpada dei minha última cabeçada, Quando deixei de dar murro em ponto de faca, Quando passei a seviciar meninos E a me entregar a atos masturbatórios Com meninas de dez anos? Aquele pulha tinha razão quando disse Que a Babilônia é o fim e o recreio de toda a vida E que nunca fomos trombetas ou colunas de fogo A anunciar e proteger a Éden socialista. Agora temos apenas esta Babel sobre nossas cabeças!
Perdi-me... Hoje, estou em silêncio No formigueiro de concreto e asfalto, Arranhando a languidez do azul, Consumido por aranha sempre a tecer, infatigável, Dominando tudo, todos com sua sombra E ética confusas, impondo sua urdidura cruel, Sempre disposta a ganhar mais dinheiro, A excluir mais viventes, A inocular outros corações... Dia a dia, sua rede cresce, Ramifica-se em todas as direções, Unindo cada ser e lar, Cada coração e alma, Tornando irmã toda a vida De teia que urdiu.
Já desafiei ruas e avenidas contra o conformismo, Esquinas e arranha-céus, Imprecando contra carros e semáforos. Hoje, retorno de ônibus para casa, Fraterno a todos, em conformidade, Compreendendo inteiramente O cansaço e a solidão de cada classe e profissão.
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