
Escrevo a poesia que ninguém lerá
Data 01/12/2012 01:30:07 | Tópico: Poemas
| Ao longe a música chia no antigo gramofone do dia quente deste final de novembro apagando o trinar dos passáros que os céus levam até o mar debruado com as velas ao vento dos barcos executando os acordes das canções de alguma infância Gaivotas voam acima dos meus medos, acima das canções inacabadas, da angústia inútil de não esquecer e da poesia escrita na bruma da manhã estampada na primeira hora atada ao dia que veio com o vento na primeira flor na primeira dor Escrevo a poesia que ninguém lerá Escrevo para as sombras da minha infância Escrevo porque sinto e porque a palavra me liberta E é esta é a minha culpa maior: dizer o que não fui, falar do inapto que ainda sou Só o que sinto e o que minto de mim para mim é o que fica de mim na aléia por onde caminha o Mistério na poeira quente das estradas sem encontros, nem companhia Ando a olhar para o céu buscando no trilar das aves, os pássaros origami que me habitam e me trazem, assim, este amor impossível pela coisas instadas, pelas estrelas e seus poemas, que não se extinguem e movem-se sem cessar ao nosso encontro? No velho espelho contemplo a chama da infância Tuas mãos pequeninas aquecidas ao sol de um inverno ofuscando, os teus olhos negros, teu corpo recendendo à paixão e à ternura Da janela do quarto ainda vejo dormir a noite Vejo dormitar o passado sob a luz de candeia de uma lua iluminando a alma, sem, no entanto, separar a solidão destes versos que me sopram Os pássaros regressam de muito longe atravessam a noite, inocentes, desfazendo o silêncio com o branco das suas asas Procuro no escuro, tateio suas silhuetas esguias, da onde virão? Trarão um ramo no bico? Os pés molhados de mar? Em meio as estrelas adormecidas a lua irrompe pela janela dos sonhos Encosto a mão na face molhada do sono, digo um segredo, calo um grito, sussurro o desejo de partir, sentindo a areia fria das dunas como se a areia houvesse sido o meu mundo, só e esbatido pelas gotas de sereno que serão o orvalho da manhã sem nome e que não demora a chegar na praça acordando os pombos e os seus arrulhos balançando as matas ao rumor do dia lançando as primeiras gotas no mar resplandecendo nos rochedos caminhando para o verão perfumado de primaveras, refletindo luzes de outonos, sob um céu nacarado de inverno As nuvens passam singrando os céus, barcos de algodão, rendas no jardim onde brotam os versos que podem dizer às almas o ouro da liberdade latente no átomo imarcescível de cada novo dia, abstrato como o papiro a escorrer as palavras do que seria um poema ou a chuva caindo errante e terna
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