
VISTA PARA O TEJO
Data 07/04/2012 19:54:16 | Tópico: Poemas
| VISTA PARA O TEJO
Sabes, às vezes um homem pára, vê aqueles que a ele se assemelham e pergunta: Deus, se sou isso como te apiedarás de mim?
E eu, que tenho passado toda a minha vida a ver e a olhar, muito mais a ver, me debato em meu leito à procura da forma ou jeito que embale meu coração arrebatado. Na madrugada, ouço o canto dos bêbados.; no dia, escuto máquinas, sem tempo para atencionar-me em mim mesmo, em mim, que passo ileso entre as lâminas e durmo, a salvo, no gume da navalha enrodilhado em mim próprio ouvindo o tempo passar nos quartos de dormir.
Cada côvado desta casa tem seu simbolismo e importância. Nos leitos, que hoje se intelectualizam, homens sem grei amaram. Da profunda cova rasa retiraram os homens de hoje, que se amofinam. Os homens que aqui dormiram, amaram e morreram, (muito mais amaram, vê-se pelo tamanho da casa) eram homens sem medo que povoaram com deus a outra metade do mundo, esfolaram prata de cada pele, semearam seu sangue em veias alheias à procura do ouro que a todos incendeia.
Às vezes, vem-me essa angústia de saudade de um tempo de têmperas diferentes de homens moldados a valentia e cansaço de dobrar, com fogo, a pureza de outras gentes. E essa minha angústia, ou saudade, é violenta. Então minhas mãos espremem gargantas dilaceram costas, sacrificam inocências como se castigassem a mim, que tenho muito mais olhado que visto.
Na prôa do gume, bocejo. Estico braços e pernas, recolho-me teso: dobres de sino emparedam-me. O tempo expulsa de si as horas que expulsam o homem do presente lacrando-o em suas memórias. Eu, acá sentado, com os olhos longe, sou homem sem futuro e de presente adormecido sonhando com o lado de lá, d’além mar, quando, no segredo, havia muito a inventar. Hoje, desnudaram os gestos e pintaram com outras cores os sígnos. E para que se veja o que há atrás de cada homem É preciso muito arder para desfazer as camadas de tinta com que o tempo os impermeabiliza. Resta o mistério são as mulheres que o tempo pinta. E elas se limpam, nunca ficam estáticas presas ao sabor da história ou da liça. Elas se movem, céleres, e se livram.
Ah, eis que um amigo me acena, de longe, a mão ensandecida pelas palavras: hullô, Ricardo (Mandela, Walt Whitman)! Toda liberdade que ali confluencia. O desejo de guerra, paz duradoura, do milagre do pão, negaceiam: Heil, Ricardo (Llorca (espíritos se agitam)
Ergo-me. Firmo os braços entalhados no espaldar do assento suspendendo o corpo do sentimento. Saio. Caminho heterogêneo pelas ruas de São Sebastião. Em frente a cada passo, um sobressalto, um salto, degrau, mímicas de pedras. Desapareço na multidão. Mas, quem caminha anônimo não sou eu.
Quem sou ficou sentado naquela cadeira olhando o cais pela vida inteira à espera de que na boca da barra surgissem mil galeras mil naus apinhadas de ingleses que viessem povoar direito as margens desse Rio que nasce no Tejo.
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