
Feliz, insuportavelmente (Thiago de Mello)
Data 23/07/2011 10:59:02 | Tópico: Poemas -> Introspecção
| Para Mário Benedetti
Aos poucos a luz perde o resplendor. O rio sabe a sangue, e ninguém sabe. É a derradeira chance de me ver pela primeira vez inteiro: cara a cara.
Simplificar prefiro. Por que hesito em revelar as águas escuras que me percorrem, essas onde moram peixes cinzentos, surdos, que me sabem?
Dizer me basta que não cometi o pecado pior do homem: o de não ser feliz (O juízo é de Borges, que era cego, mas descobriu a rosa escondida no coração da moça.)
Vi o fundo de um lago de esmeraldas. Eu fui feliz, insuportavelmente. As desgraças que duras me feriram nada foram (contando a de existir) ao lado dos milagres que vivi, dos mágicos momentos que inventei.
Não é preciso ir longe. Numa noite de ardente primavera eu viajei, abraçado aos cabelos desvairados que me ensinavam o cântico dos cânticos, pelo mar dos espaços siderais.
Voltei intacto. Parece que passaram eternidades. Sozinho agora sou: perante mim, ou entre mim e a noite que me chama, espaço em que mal cabe o que escondi.
E mais de meio século de festa, de lágrimas, de assombro, de ternura, inútil se resume na fagulha fugaz do tempo em que meu ser total, resíduo de memórias, já se adere — imperceptível — ao silêncio noturno da floresta.
©Thiago de Mello, Poemas Preferidos pelo autor e seus leitores, 2001 (Do Livro: Campo de Milagres,1998) Editora Bertrand Brasil Ltda Rio de Janeiro - RJ - Brasil.
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