
Teias
Data 30/10/2010 23:01:33 | Tópico: Poemas
| [Poema a meio caminho do nada]
Na extensa fieira de habitualidades Que cadencia a minha vida, Não há hora e vez para desatinos. Não bastasse eu apequenar-me
Sob o peso da dura canga da vida, Eu ainda me enleio nas teias Pegajosas das minhas palavras; Faço do Sim, o Não — corto a ação!
Para deixar a hora morrer no vazio, Não preciso da ajuda de ninguém; Há muito que aprendi a derrotar-me, E a preparar, com esmero, o laço vicioso:
A língua da fria razão ajeita o nó e a argola, Desembaraço as laçadas dos argumentos, E, perplexo, mas perfeitamente submisso, Escondo-me sob montanhas de falácias
Que ocultam o rio escuro dos meus desejos. A minha boca profere as rodilhas do laço, E uma a uma, elas me envolvem da cabeça aos pés! É assim que, cabeça baixa, eu me ato e fico;
Eu sou o metódico dono da Casa de Armarinhos, Sou um hábil construtor de muros, Sou a nulidade absurda da mesmice estagnada, Sou o semivivo que habita o quarto dos fundos.
Espio a rua nas horas lentas da tarde Enquanto espero o dia de revoltar-me contra A surdez desse velho muro do Não — Nesse dia, as palavras serão a minha espada; E então — só então, eu cortarei as velhas peias, E deixarei que me levem as enxurradas Que jamais voltam às cabeceiras das ruas; Não olharei para trás, vou... vou... vou; Mas por hora não; ainda não! Se uma solução grita-me possibilidades, quero tempo: Tempo para amortecer o ímpeto de ir, E engendrar astuciosas vias de fuga.
Com as mãos frias e o coração ainda aos pulos, Tento abafar os rangidos do molejo da hesitação; Paciente, remendo o tecido das horas: Com as finas agulhas dos pensamentos,
Vou cerzindo as falhas que encontro; Se mais falhas surgem, mais pontos dou, E com essas agulhadas de medrosa indecisão, Abato o entusiasmo da solução para escapar.
E assim, consigo, mais uma vez, Adiar o encontro de mim — Recuso-me a nascer para outros mundos! Torno a olhar o longe da rua e espero...
Daqui a pouco, passa o carteiro Alfeu, Assobiando em sua bicicleta Philips; Em seguida, passa o Benedito padeiro Imbuído no compasso de sua égua sonolenta;
E logo após, espero pelo sorriso brejeiro Da moça da farmácia que volta do almoço, [Admiro as suas belas coxas, mas é claro, Sendo quem sou, não sei o nome dela].
Já passa das duas horas da tarde; É hora de passar o Avelino, oficial de justiça, A cumprir sua rotina de entregar avisos Que ninguém jamais ousa ignorar.
[E se o Avelino me trouxesse um aviso assim: "O senhor está intimado a ser livre, etc, etc..."? O que farei?! O que farei para não ir?! ]. Antes que a tarde caia, passará o irônico viajante
Que me reabastece o Armarinho; Reponho, assim, ao fim do dia, O estoque que dá continuidade ao negócio. [Se esse homem não mais voltasse,
Ou se voltasse, mas não me desse mais crédito, Eu fecharia o Armarinho e ficaria livre; Mas ele me conhece bem; sabe que sou honesto, Sabe que eu o espero, e me tortura com o seu sarcasmo!].
Espero terminar o desfile de habitualidades Que marca a cadência dos meus dias, E à tardinha, com a ponta da tesoura preta Que pertenceu a minha avó, farei mais uma marca
Na régua dependurada atrás da porta; Mais um dia, meu Deus, mais um dia sem ir! [Reafirmo: eu não tenho no que me agarrar; A minha fé é um bule quente e sem asa!].
Mas a esperança é apenas o engodo da continuidade, Esperarei pelo dia seguinte que poderá ser, Enfim, o dia do uivo deste lobo faminto Que vive a devorar as minhas entranhas.
Quem me vê atrás do balcão do Armarinho, Quem vê os meus olhos baços de desânimo, Quem vê o meu jeito amolentado de ser, Nem de longe imagina — eu juro! —
É com todo o fervor que eu espero esse dia! Quando há de vir? Não sei... não sei... E agora, para disfarçar a minha fraqueza, Para esconder essa minh'alma
De tíbia água chilra, Vou escrever a desculpa que me dou; Meto aí estes versinhos bobos, descabidos, Que não passam duma filosofia de ponta-de-rua:
Não me engano mais: A face dura como a pedra, O túmulo dos lábios cerrados São preferíveis ao riso fácil Que emoldura as cotidianidades!
[Não me olhem assim! Não sei o que isto quer dizer, Acho que nada... nada mesmo! Será que copiei esses versinhos de alguém?] Se eu pudesse, se eu não fosse tão tíbio,
Eu diria que eu sou um enigma, Mas a tanto não me atrevo; E como fecho, ofereço-vos, de coração, Este simplório jogo de palavras:
Se não me denunciei nestas linhas É por que olhos remissos as leram, Mas, se eu me narrei nestas linhas, Então, este poema está incompleto:
— Ficou a meio caminho do nada!
[Penas do Desterro, 9 de outubro de 1998]
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