
Muito mais grave (Mário Benedetti)
Data 24/09/2010 11:07:53 | Tópico: Poemas -> Amor
| Todas as partes de minha vida têm algo teu e isso na verdade não é nada de extraordinário tu o sabes tão objectivamente como eu.
No entanto há algo que gostaria de esclarecer-te, quando digo todas as partes, não me refiro só a isto de agora, a isto de esperar-te e aleluia encontrar-te, e caramba perder-te, e voltar a encontrar, e oxalá nada mais.
Não me refiro só a que de pronto digas, vou chorar e eu com um discreto nó na garganta, bom, chora. E que um lindo aguaceiro invisível nos ampare e quem sabe por isto saia de seguida o sol.
Nem me refiro só a que dia após dia aumente o stock das nossas pequenas e decisivas cumplicidades, ou que eu possa crer que possa converter os meus reveses em vitórias, ou me faças o terno presente do teu mais recente desespero. Não.
A coisa é muitíssimo mais grave quando digo todas as partes quero dizer que além desse doce cataclisma, também estás a reescrever a minha infância, essa idade em que dizemos coisas adultas e solenes e os solenes adultos comemoram-nas, e tu ao contrário sabes que isso não serve.
Quero dizer que estás a rearmar a minha adolescência, esse tempo em que fui um velho carregado de receios, e tu sabes ao contrário extrair desse deserto o meu gérmen de alegria e presenteá-lo olhando-o.
Quero dizer que estás a sacudir a minha juventude, esse cântaro que ninguém nunca pegou nas suas mãos, essa sombra que ninguém aproximou da sua sombra, e tu ao contrário sabes estremecê-la até que comecem a cair as folhas secas, e fique a armação da minha verdade sem proezas.
Quero dizer que estás a abraçar a minha maturidade, esta mistura de estupor e experiência, este estranho confim de angústia e neve, esta vela que ilumina a morte, este precipício da pobre vida.
Como vês é mais grave. Muitíssimo mais grave. Porque com estas ou com outras palavras quero dizer que não és tão só a querida menina que és, e também as esplêndidas ou cautelosas mulheres que quis ou quero.
Porque graças a ti descubri, (dirás já era hora e com razão), que o amor é uma baía linda e generosa, que se ilumina e se escurece, de acordo com a vida, uma baía onde os barcos chegam e se vão, chegam com pássaros e augúrios, e vão-se com sirenes e nuvens carregadas.
Uma baía linda e generosa, onde os barcos chegam e se vão. Mas tu, por favor, não te vás.
Mário Benedetti, poeta e escritor uruguaio.
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