
Lola
Data 18/09/2010 22:00:47 | Tópico: Contos
| Lola é bonita em tudo! No seu Mundo de fantasias, a vida desperta.
As nuvens trazem água. Lágrimas do céu. Ela continua serena. A vida é serena.
Lola não pára. Tem o destino marcado. Um encontro.
A imaginação não tem complexos, a ilusão é real. Filhos. Já grandes, sem complexos.
Onde andará Lola? Estará ela em casa? Talvez a tomar um chá.
A noite chegou. As estrelas não se vêem. O Mundo pára. Procura Lola.
A campaínha toca. Ouvem-se passos mas ninguém atende. Toco de novo. Volto mais tarde.
Saio do carro, apanho ar, ar puro e deveras sufocante. O relógio bate as horas. A vida continua mas o carro não pega. Tento várias vezes e nada. Abrir o capôt para ver se se vê algo de anormal no meio daquela normalidade toda. Peças, mortas. Telemóvel. Sem rede. Sosinho com um carro morto. Avanço, deixo o carro e pego na mochila, dou uns passos e tento usar de novo o telemóvel. Nada. Merda. Na mochila só peças mortas.
Em casa de Lola só imaginação. Tudo funciona às mil maravilhas. Lola vive de dias, os dias são como rebuçados de chocolate. E a vida prossegue, continua, avança. As tentativas são sós.
No meu caminho só vejo árvores e mais árvores, todas as espécies. Altas, baixas, novas, velhas, sempre em pé, umas a seguir às outras. Um pássaro vem ter comigo. Traz noticias. Lola está feliz. É feliz. A vida é de cada qual e a minha está só. Sosinha com árvores e peças mortas. O pássaro foi-se. Deixa apenas a noticia. E agora? Como estará agora? Ainda estará feliz? O Tempo passa mas a vontade fica.
Lola prepára o dia de ámanha. É dia especial. É dia de festa. A casa é uma caixa de supresas, uma caixinha. O laço desenlaça-se, a tampa abre-se, o escuro sai, a imaginação solta-se. Na televisão velhos westerns. As coboyadas do costume. O bom em perseguição do mau. Lola vai à casa de banho. A toilette está no sitio. A roupa interior tambem. Lola está só. Em casa, rodeada de coisas mortas. Espelhos, com luz própria. Lola sabe que é bonita. Os segundos entram nas horas, os minutos passam. A roupa interior sai do sitio. O local muda de sitio. O coração de Lola salta e pensa em mim.
Páro no caminho. Olho uma árvore de fruto, uma desilusão. Uma costela vem-me à cabeça. O fruto passou pela costela e subiu-me à cabeça. Lola é um fruto. A fome está sem fome, está cheia. A sede secou, a água não correu. Lola não é esquisita.
O dinheiro. Uns trocos no bolso. Não me serve de nada, as árvores não o seguram e não o apanham. Atiro uma moeda ao chão. Calhou caras e eu reparo no desinteresse delas no meu dinheiro, nos meus trocos. Ainda daria para três pães. Um para mim e um para Lola, e outro talvez para o passarinho, caso aparecesse. Mas nem uma padaria, um supermercado, um tasco. Nada, só árvores. Recordo o fruto, a árvore de fruto. Com esta conversa já ia um, mas agora já não volto atrás, seria perder tempo e Lola. Não sei se terá tempo, se esperará o tempo suficiente por mim. A poesia de Lola revela-se. A fotografia fica gravada na memória. O filme desenrola-se em directo. Não há paragens, só passagens e viagens. A memória quer-se curta.
A inteligência desperta-me. Observo com pormenor. Vejo o pormenor. Estudo o pormenor. A viagem continua. LOla chama o pássaro e conta-lhe algo. Ouviste. Pergunta Lola. O pássaro abana a cabeça. Responde. Sai disparado e voa o mais alto que consegue. Lola está ciente disso, nem se mexe. Passa a ser apenas uma peça, morta. Morta de raiva por estar viva e não feliz.
A inteligência acordou, espreguiça-se, boceja, espreita a memória curta e comprida, profunda, que penetra lá no fundo do nada, do desvirado, e passa a ver branco. Fecho os olhos por momentos, mas os pés e as pernas não param. O pássaro aprochega-se e dá-me uma bicada com força na cabeça.
Lola vai até à cozinha. Já marchava um "prearado", mas nada está preparado, o dia da festa mantém-se. Ámanha, Terça-feira.
O tempo não espera pela demora e a cabeça solta-se, cai sem ninguém reparar, silenciosa e deixa-se ficar para trás. O Tempo está em todo o lado. A cabeça escolhe um tempo certo. No tempo certo o passado e o futuro podem não bater certo, mas o Presente é o que se vê. É vida, é Lola, é vontade. Vontade de Lola e de vida, de viver para morrer.
O coração. Morto de ciúme, ou vivo. Escondido não pára de se esconder, troca o escuro pelo escuro enquanto aguarda pelo morrer, pelo Presente. Um coração morre, será o de Lola? Ela não responde, estará a ficar surda? Roupa interior, sem cor branca, só espaço. O corpo forma-se e desenvolve-se, as pessoas trabalham os corpos, tocam-nos e tocam-se, tocamo-nos. A solidão é boa e eu encosto-me. Sonho com incertezas, penso em verdades, em passados curtos, não como se esperavam, mas curtos o suficiente para alcançar a perfeição. Lola ainda queria estar mais sosinha, sem peças mortas à sua volta, só com a liberdade, presa a um dia fictício mas contudo sempre possivel. Não existem impossiveis.
A roda rola. O Mundo enrola, enrola-se. Ocupa o espaço, o vazio, e espera a morte do próprio Tempo. Grito. Alto. Pára. Volta. Lola. Estou. Vem. Volta. Raios e trovões. As nuvens encostam-se uma às outras, o espaço é pouco e não sei se à espaço para todas. Todas cá estão. Potenciais potencias. Anarcas. Descobridoras do nada que se consome a si mesmo, sem razão, sem objectivo, sem recompensa. A promessa não existe, só um destino marcado, por quem não se sabe e porquê tambem não.
Lola está em dívida para comigo. Não há prazos, o calendário torna-se infinito, mas o meu, o meu calendário dos dias que comigo passam, o calendário que marca o meu destino, o meu calendário, tem prazo. Tem limite de velocidade e limite de carga, e tem todos os excedentes a esse mesmo prazo.
Uma árvore estatuada no meio do meu caminho entre as árvores. É forte. Contorno-a e aprecio-a, só não a trepo porque Lola me espera e eu não quero perder mais tempo. As horas entoam na minha cabeça, o descanso chama por mim. Páro mesmo aqui. Já. Lola adormece no sofá, por entre coisas mortas, ouve-se o chamamento dos sonhos interiores ao cansaço.
Eu e Lola adormeçemos ao mesmo tempo, como sempre fazemos. Só nós dois sabemos este nosso truque, que não pertence a mais ninguém.
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