
No tempo em que ainda se escrevia à máquina...
Data 01/09/2010 20:41:12 | Tópico: Textos -> Humor
| A explicanda chegava todos os dias, impreterivelmente, à mesma hora. Metódica, introvertida, detentora de um mundo que não desaba nunca, por força do ar impenetrável e certinho, lavado e engomado e de uma imensa vontade de aprender, aquelas coisas da filosofia… A professora recebia-a com um enorme e jovial sorriso, próprio de quem iniciara o mundo do ensino e ainda se deslumbrava pelo simples facto de leccionar e poder transmitir um pouco de conhecimento. A aluna admirava a explicadora pela sua beleza e pela forma como parecia saber viver com ela, bem como pelo trato fino. A matéria era revista, uma e outra vez, até ter sido completamente absorvida pela explicanda, que, neste caso, rima com Vanda. A jovem estava particularmente atenta e contestava as definições que era obrigada a decorar, já que não estando de acordo com aquilo que lhe era imposto como verdadeiro, não lhe seria possível reconstituí-lo por palavras suas. Restava-lhe o “marranço” puro e simples. Decorar aquela matéria, estava na ordem de trabalhos. A professora sentiu-lhe alguma agitação e resolveu perguntar-lhe se lhe queria dizer alguma coisa. - É que… eu ganhei uma máquina de escrever! - Por instantes pensei que fosse outra coisa qualquer, mas sim, é importante, depois vamos falar sobre isso. Só para situar a história no tempo, estávamos no ano de 1978. Uma máquina de escrever fazia as delícias de Vanda que a recebera de prenda de anos, da sua madrinha de baptizo. Hoje este instrumento de trabalho passou a peça de museu e arrumado a um canto deu lugar aos computadores que ganham vida, mais do que certos humanos, especialmente, se conectados à internet. Posta a matéria em dia, que estas coisas da filosofia não são fáceis, a explicadora, tal como prometera, puxou o assunto: “máquina de escrever”: - Quero pedir-te um favor! - Diga, professora! - Talvez tu… quem sabe? Só por uma questão de praticares, me pudesses passar à máquina os testes do 12ºB. - Claro que sim! Respondeu Vanda. Vanda despediu-se levando consigo o rascunho do teste de filosofia do 12ºB, já o estabelecimento de ensino não vem agora ao caso, isso são meros pormenores e o narrador, considera-os, para já, irrelevantes e dispensáveis. Com os exames à porta, a jovem estudava sem interregno, mas ainda assim lá arranjou tempo para dactilografar o teste do 12ºB e entregá-lo à Drª Raquel, nos timings por ela solicitados. Como em tudo na vida, há histórias paralelas. Outros aproveitariam, agora, para dizer que: “nada é por acaso”, mas porque lugares comuns não são o forte do narrador e aqui também não servem para encher chouriços, passa-se a explicar a coincidência das coincidências: Paula, aluna do 12ºB, prima do namorado de Vanda, sem poder antever o desfecho desta história, dias antes, em conversa com a sua professora de filosofia e na esperança de lhe ser mais próxima e de a cativar, havendo já concluído, em conversas próprias de raparigas daquela idade, que a sua professora era a explicadora da prima Vanda, resolveu meter conversa com Raquel: - A “Stora” sabia que eu sou prima da Vanda que anda na sua explicação? - Vê lá tu, “como o mundo é pequeno!”, retorquiu Raquel, algo curiosa. Por acaso vocês até têm a mesma postura, embora, fisicamente, não sejam parecidas. Paula apressou-se a colocar os parentescos no seu devido lugar: - Pois a Vanda é caladinha como eu, mas não somos primas de sangue, ela namora com o meu primo Pedro. Raquel esboçou um sorriso de condescendência. O que Paula desconhecia é que ela, Stora, licenciada, professora de filosofia, não era muito entendida naquela coisa dos parentescos e afins, enfim, todos temos um “calcanhar de Aquiles”. Ups, afinal, o narrador sempre faz uso de lugares comuns. Também, “ninguém é perfeito”! (e vão… quatro!). De primas direitas, Raquel ainda entendia, mas de cunhados /as e outras coisas como comadres e compadres, sentia-se bloqueada com uma espécie de dislexia intelectual, no concernente a questões de plaquetas sanguíneas. Dali em diante, Raquel sempre que encontrava Paula, cumprimentava-a e não deixava de lhe perguntar se a prima estava boa, mesmo que tivesse estado com ela também. Ter um assunto em comum dá sempre jeito para tema de conversa e às vezes até aos professores de filosofia lhes falta o assunto. Vanda era, agora, detentora, de uma bomba prestes a explodir nas suas mãos. Estava num “beco sem saída” (mania do narrador). Paula era boa aluna, mas era a prima do seu namorado Pedro (o narrador também sabe que o nome não vem ao caso) e o facto de poder ser ela a dar-lhe a cópia do teste que a prima ia fazer, contava pontos a seu favor. Por outro lado, a Drª Raquel confiara nela e sentia-se importante por isso e não queria decepcioná-la. Há momentos, em todas as vidas, em que estamos suspensos por um dilema. Este era o momento. Pedro, se para mais nada serve no enredo desta história, pelo menos, é o personagem que serviu de portador do teste andarilho. Vanda chegou à explicação com o produto do seu orgulho dentro de uma mica (perdoem-me se por acaso, por um erro cronológico as micas ainda não existiam). Tratou de entregar a Raquel o teste do 12ºB. Raquel agradeceu e tratou de se dirigir à livraria mais perto para mandar tirar as fotocópias necessárias. A funcionária reconheceu o teste e, não se contendo, teceu um comentário do tipo: - Curioso, ia jurar que este mesmo teste foi copiado, aqui, por mim, há sensivelmente uma hora atrás… Raquel limitou-se a perguntar se fora homem ou mulher quem o viera copiar. A balconista respondeu que tinha sido uma jovem, muito branquinha, com um certo ar angelical. A professora sorriu e pediu 28 cópias, tantas quantos os alunos do 12ºB, noves fora Paula. Raquel entrou na sala de aula com os testes e começou a distribuí-los e Paula muito aflita pediu licença e pôs-se de pé, com o sangue a querer saltar-lhe das bochechas para fora e com o palato engasgado, meio afónica da força dos nervos, lá conseguiu vociferar: - Stora, falto eu! Raquel retorquiu: - Ia jurar que tu já o tinhas contigo! Mas toma lá o original! Paula sentiu a saliva queimar-lhe as entranhas, mas lá se recompões e conseguiu simular-se desentendida, articulando um simples: - Obrigada, Stora! Paula baixou a cabeça sobre o teste e Raquel não tirou os olhos de cima dela, como se quisesse estudar a sua reacção face à ansiedade de saber se o teste era o mesmo que Vanda lhe havia facultado, mas a jovem mostrou-se impenetrável, denunciando, apenas, um ar, dir-se-ia quase inocente. Saiu vitoriosa do teste, ela sabia-se uma boa aluna, do tipo marrona e intelectual, mas nunca havia saboreado uma tal sensação de certeza absoluta. Vá-se lá saber porquê… Afinal, até o narrador é capaz de adivinhar. As aulas em casa da Drª Raquel iam de vento em popa, dir-se-ia, até, mesmo imperturbáveis, Vanda preparava-se para o exame de filosofia e sabia que depois deixava de conviver com a professora, mas restava-lhe o conforto de esta ser sua vizinha, assim, pelo menos, dava para a ir vendo e cumprimentando. Vanda evitava olhar a explicadora de frente, constrangimento que não passava despercebida a Raquel. O dia do exame de Vanda chegou e embora não lhe tenha corrido mal em nada se comparava ao teste que Paula fizera no 12ºB. O resultado de Paula foi brilhante e a professora Raquel entregou-lho, com a seguinte observação: - Há alunos brilhantes, primas brilhantes e Pedros cooperantes… Paula corou e mal dando conta já estava no quadro para responder a questões similares às do teste e outras cuja matéria não saíra mas estava indicada para estudo. Raquel deu-se por satisfeita e classificou a prestação oral de Paula com um excelente. A aluna limpou o suor em volta do rosto ao mesmo tempo que as cores lhe desapareciam como que por magia negra. João que era o cábula número um da turma não se contendo aproveitou para dar o ar da sua pretensa gracinha: - Oh Stora, Então a intelectualzinha também copiou? Raquel respondeu-lhe mordiscando o lábio superior: - Tens máquina de escrever? - Não, Stora! - Tens algum primo chamado Pedro? - Também não, Stora! - Então, no teu caso, não vale a pena vires ao quadro. Diz à tua mãe que quando lavar a camisola que trazias vestida no dia do teste, para tirar primeiro das mangas as cábulas que tu lá escondeste, não vá a tinta manchar a camisola. Olha que eu reparei que era de marca! Para Raquel, enquanto professora de filosofia, a vida é um ensaio permanente. Cada personagem real tem o seu papel no seu aprofundamento do conhecimento humano e se por vezes as pessoas se mostram previsíveis, outras tantas são um universo cerrado e inacessível. Como o narrador é prolixo em imaginação e faz recorrentemente uso de frases feitas, cá vai mais uma que encaixa na perfeição: “Cada pessoa é um mundo” e com um empurrãozinho lá conseguiu completar o pensamento com palavras de sua autoria, fracas, mas que lhe fazem sentido, a ele, é claro: Uns são previsíveis…outros um quebra cabeças… Voltando aos personagens: Vanda fez o que qualquer outra pessoa que tivesse um namorado chamado Pedro com uma prima de nome Paula faria; Paula aproveitou a chance que a vida lhe deu. Afinal, a vida insistiu com ela. Pedro tinha acabado de tirar a carta e aproveitando a rodagem do carro novo disponibilizou-se para transportar o rascunho do teste. Nem ele sabia bem de que era portador… Raquel passou a acreditar em coincidências, mas foi só por causa da convicção da balconista da papelaria das fotocópias; A balconista nunca mais lhe coube a língua na boca; João era o amigo com que qualquer colega gostaria de partilhar a carteira; O estabelecimento de ensino era um entre muitos onde este caso insólito podia ter acontecido; Esqueceram-se da madrinha, que foi, afinal, a causadora de todo este processo de boas intenções; Para “fechar com chave de ouro” (já cá faltava o narrador sempre a fazer das suas…) até se “dão alvíssaras” a quem discernir quem é o protagonista… “Nada mais, nada menos” do que a máquina de escrever. Engana-se quem julga que a história acabou. 30 anos mais tarde, no lançamento de um livro de um dilecto escritor Setubalense, Raquel encontra Vanda e pergunta-lhe: - Já agora, diz-me uma coisa… Ainda tens a máquina de escrever?
Maria Fernanda Reis Esteves 50 anos natural: Setúbal
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