
O DIA EM QUE MEU PAI MORREU
Data 27/04/2010 20:30:31 | Tópico: Poemas
| Desperto, confuso e apavorado com o estertor que rasga a alvorada, no pulsar do telefone estremunhado escuto o rugir da derrocada. O medo e o pavor atiçados chamam do outro lado da linha, o frio e os ventos gelados ostentam a gadanha rainha.
À pressa visto o blusão, os sapatos e a calça fria, ainda agarrado à ilusão devoro a longa escadaria. Corro na noite, atordoado, atravessando a estrada deserta, meu coração bate, desvairado, nó que se agiganta e me aperta.
No quarto de mágoas pintado, encontro teu corpo sem chama, a morte, brinca com o baralho viciado, sentada na borda da cama. Sacudo-te, grito, chamo por ti, aflito, buscando tua luz perdida, mas, neste jogo maldito, já não tinhas o ás da vida.
O médico que viste crescer, chega em menos de uma hora, sem nada poder fazer senta-se no sofá e chora. Almas tristes vão chegando, para teu derradeiro acto, vendo o gelo galopando, à pressa, vestimos-te o melhor fato.
Atiram teu corpo num caixão e a tampa é cerrada, choro e comoção acompanham tua retirada. À rua, sai o cortejo, em dolorosa agonia, nas janelas cresce o rumorejo, ainda mal começou o dia. Deslizando no nevoeiro volto a casa para me recompor, sob as aguas do chuveiro, em lágrimas, lavo minha dor. Recuperando o fôlego perdido, de luto saio trajado, ainda confuso e aturdido volto para junto de teu corpo algemado.
Envolto em silêncio ameno repousas em lençóis rendados, teu rosto, agora sereno, permanece de olhos vendados. Acordar-te queria eu poder, mas sinto que não sou capaz, resta-me consolo por saber que finalmente dormes em paz.
O tempo arrasta-se, lento, o sol vai rumando ao poente, esforçando-se por doar alento de todo o lado chega gente. A noite apossa-se do dia, cresce o rumor da multidão, negros véus na ventania, uns vêm, outros vão.
Quando a multidão se esvai nas vielas, dorido, o silêncio retorna, flores cansadas e luz de velas decoram a saudade que nos adorna. Pela fadiga acossado e mordido fecho olhos a triste dia, entregando meu corpo rendido às sombras pungentes da sacristia.
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