Deuses, deus, religiões, fé
Propunha, a quem se interesse pela questão de Deus, ou dos deuses, que recuasse no tempo para tentar restabelecer o trato sucessivo deste problema, que é uma herança religiosa e mitológica, mas que os gregos, fazendo incidir a Razão sobre essa herança pré-filosófica, transformaram em filosofia sobre o mundo, sua origem e suas forças…
Para Aristóteles, que alguns consideram pai da Lógica Formal e do método científico, «até o apaixonado pelo mito é, à sua maneira, um filósofo».
Tomemos, por momentos, o Atomismo de Epicuro, a atitude mental com que o filósofo abordou a matéria. Não obstante ser racionalista e materialista, não era ateu.
Para um bom observador, mesmo do nosso tempo, a natureza é uma “luta”, uma “dinâmica” de forças motrizes, aparentemente antagónicas, que culminam numa hierarquia entre deuses e gigantes e os outros. «A sugestão de Anaxágoras de que a força motriz podia ser uma Inteligência capaz de ordenar todas as coisas, foi retomada por Platão e incorporada na sua religião».
Ora, já em tempos mais recuados, os nossos antepassados revelavam um pendor impressionante para se interrogarem e refletirem sobre questões que não “podiam” depender da observação e da perceção sensorial.
Então, como agora, com as devidas proporções, o empírico não era revelador, pelo contrário, parecia ocultar. E o oculto aos sentidos tornava-se um desafio à curiosidade e ao desejo de explicação.
Nesses tempos, o empírico era menosprezado nas respostas que podia dar às grandes questões desses tempos. O próprio Epicuro, com o Atomismo, e paradoxalmente, porque afirmava fundamentar-se no testemunho dos sentidos infalíveis, não passava de um dogmático. “A teoria atomista não é uma hipótese que possa ser verificada pela sensação, nem se põe a questão de ela ser rejeitada como falsa”.
Nesses tempos, a preocupação, em termos de conhecimento, focava-se na “inteligibilidade”, “na intuição imediata de uma proposição evidente em si mesma”, na “evolução” das coisas, desde um “princípio” até à ordem conhecida, de verdades e de objetos do domínio do totalmente impercetível, problemas insolúveis que estão para além do alcance da observação, a origem do mundo e o “que se passa no céu e debaixo da terra”…
Somos capazes de pensar e chegar a conclusões verdadeiras, em muito mais coisas do que conseguimos experimentar, observar ou imaginar.
Ao olharem para o mundo, ao observarem uma ordem, ao pensarem num processo, os nossos antepassados pré-helénicos, seguiram uma via racional e inteligente, diria mesmo, surpreendentemente condizente, ou, ainda assim, próxima das modernas teorias cosmogónicas.
Os filósofos gregos perceberam que nos mitos cosmogónicos havia problemas implícitos. De pergunta em pergunta, chegaram a questões essenciais sobre o estado original das coisas, a formação do universo, a composição da matéria, o aparecimento da vida, a ocorrência das forças antagónicas, o movimento, a inteligência, a faculdade da sensação, a maneira como é adquirido o conhecimento, a teoria das ideias, “como podemos procurar uma coisa que não conhecemos e como havemos de saber quando a encontramos?”, “pode a virtude ser ensinada?”…
De certa forma, a mitologia era a linguagem possível de uma racionalidade sobre “casos” passados que permaneciam desconhecidos. A perceção de que o oculto, o desconhecido, o “inadvinhável”, o incontrolável poderoso, o misterioso inatingível, o “indeterminado” de Anaximandro, vai ganhando vulto à medida que as questões vão sendo colocadas, faz aumentar a margem de especulação e de tentativas de explicação.
Se os poetas criaram os deuses, também “tiveram de” criar a explicação da sua origem. No poema de Parménides, “o Ser não pode surgir do Não-Ser, nem pode deixar de ser”.
“A natureza das coisas ou origem do mundo ordenado é uma substância única”, etc….
“Toda a filosofia se baseia no postulado de que o mundo tem de ser uma ordem inteligível e não apenas uma confusão de vistas e sons a inundarem-nos os sentidos a cada momento”.
“A filosofia é responsável por um dos alicerces de uma religião monoteística e universal, na qual foi possível ao Logos de Heraclito e ao Espírito de Anaxágoras fundirem-se com um Zeus espiritualizado”.
No sistema de Epicuro, “uma das suas três partes tratava das coisas que eram totalmente impercetíveis aos sentidos e acessíveis apenas ao pensamento: os deuses e as realidades materiais últimas, os átomos e o vácuo”.
Volvidos tantos séculos, nem o cristianismo, nem o islamismo, nem a revolução técnico-científica parecem ter acrescentado algo de consideravelmente esclarecedor sobre os deuses, Deus, Logos, empirismo…
Surpreendentemente, se alguma religião deu um contributo para resolver o problema da origem do mundo, foram as mitologias pagãs.
A filosofia dos gregos encontrou nelas o problema e as hipóteses para a investigação.
Os deuses ou o deus necessário não parecem ter correspondência com o Deus hebraico-cristão, nem quanto aos atributos, nem quanto à função. A invenção de deuses ou de Deus, não tendo sido arbitrária, porque respondeu a uma série de processos silogísticos, deixou de ser uma simples questão de conhecimento e foi sendo, cada vez mais, ao longo dos tempos, uma questão de autoridade, domínio e influência. É desta apropriação dos poderes de Deus, ou dos deuses, pelos profetas, sacerdotes, reis, alguns dos quais se entronizaram como divinos, e pelos fiéis, que a humanidade tem estado dependente e, consentidamente, refém.
Os poderes transformaram a questão de Deus, ou dos deuses, numa questão de fé no divino.
Se bem que nenhum escrito tenha sido atribuído a Jesus Cristo, o que o absolve das graves acusações que referi, tenho a convicção de que nada sabemos sobre Deus, ou deuses, a não ser o que filosoficamente nos permitem as deduções.
Neste caso, aceitar um deus ou deuses, segundo os mesmos princípios de conhecimento e a mesma lógica, implica concluir que não fala, não se faz entender, não intervém, não dá qualquer sinal da sua existência, nem das suas características ou atributos… Se o meu testemunho não for tido em menos conta do que o testemunho dos profetas ou dos videntes, ou dos poetas inspirados pelas musas.
(As frases colocadas entre "comas" e «aspas», foram copiadas do livro Principium Sapientiae, as origens do pensamento filosófico grego, de F. M. Cornford)