Ai, este meu faducho lisboeta
Ai, este meu faducho lisboeta
Ai que doce expressão tem este céu nublado
Me faz lembrar todos os mais lindos sorrisos
De tudo o que mais amo e tenho na vida
Céu nublado, a mais bela tela pintada
Com suas nuvens maravilhosas em cores
Pintado dos brancos a todos os cinzentos
Meu céu alado me faz sonhar mui longe
Me leva em viagens com tudo o que amo
Desses mares, em suas vagas a boiar
Acima e abaixo na miragem duma praia
Eu me largo completamente à toa
Estou viajando vestida de liberdade
Nessas imagens aladas do meu céu
Em suas nuvens os filmes possíveis
De imaginar me deixam em êxtase
São mistérios dos mais belos a guardar
Em meu coração com tanta admiração
Minhas nuvens se vestem de capricho
São fiapos, estilhaços de ar reprimido
Lá longe, muito alto, um risco rasga o céu
Mais abaixo numa perfusão de diferenças
Tão belas as fofas de flocos de algodão
Disputam a atenção com as pinceladas
Meu Deus, meu céu, minhas nuvens
Que me acompanham todos os dias
Sobre o rio vêem cantar um faducho
Bem trinado das mais belas orgias
De imagens aos milhares todas juntas
Um milagre da Natureza que adoro
São estas as nuvens por cima do Tejo
Ao final da tarde, que me tiram o ar
Que me deixam sôfrega de palavras
Para as descrever assim de tão belas
E dificilmente conseguirei enumerar
todas as distintas nuvens do céu
deste meu Tejo que viajam ligeiras
e com ele vão brincando a se mirar
em suas águas que as reflectem
Ó meu querido Tejo, rio do meu coração
Confesso-me apaixonada pelas tuas nuvens
E todos os finais de tarde lá estão elas
Parece que me aguardam e se estendem
Com toda a sua vaidade a me encantar
Enquanto caminho rodo a visualizar o céu
E em todo o seu horizonte elas estão lá
E sei que se tornaram minhas companheiras
Das mais felizes horas de contemplação
Já há alguns anos que vivo esta paixão
Estes encontros matreiros, que me fogem
Ao alcance, no limiar e no preciso momento
Em que o rio toca o céu a magia surge e
Em cada um de todos os dias do ano
Uma nova paixão que jamais conseguirei
Descrever completamente me arrebata feliz.
E no mistério da alma de cada lisboeta um faducho malandro se aquieta após o pôr do sol na Graça, na Madragoa e em Alfama.
Eureka
EU DURMO COM A MINHA MULHER
Cada um tem a sua
Sua maneira de viver,
Há os que vivem na rua
E que na rua irão morrer.
Há os que vivem com fome
Em estado de precariedade
A miséria os consome
Vivendo da caridade.
Outros vivem em Palácios
Nasceram em berço de ouro
Sendo já o prefácio
De uma vida ao miradouro.
Há os que são protegidos
Pela nossa sociedade
E os que são agredidos
Sem haver dó nem piedade.
Mas para pecados meus
Não consigo compreender
Que haja quem dorme com Deus
E eu durmo com a minha mulher.
A. da fonseca
AMAR ODIAR
AMAR ODIAR (fado)
Muito mais que querer bem,
Há quem ame odiar:
Dos prós e contras d’alguém
Ou d’algum lugar
Não faz nunca nada além
De menosprezar.
Se desconfiar é seu mote,
Ser só, sua sina…
Quem sempre à espera do bote,
Ardis imagina.
Em tudo espera o chicote
Da língua ferina.
Parece-lhe bom ser mau;
Cínico, talvez.
Vendo pior o mundo real
Por estupidez
E o amor etcetera e tal…
Como outro revés.
Diz-se, porém, precavido
D'alheios deslizes,
Pois tem o peito ferido
De más cicatrizes.
Mas só faz ecoar gemido
Dos mais infelizes…
Muito mais que querer bem,
Há quem ame odiar!...
Dos prós e contras d’alguém
Ou d’algum lugar
Não faz nunca nada além
De menosprezar.
Betim - 20 07 2023
Altar: A Festa Triste
Às vezes penso que ainda mastigo sobre o mesmo altar. Como se o tempo não fosse forte o suficiente para abalar com a fortaleza da minha miséria.
Às vezes não me é suficiente saber que já não arranho os dentes uns contra os outros, às vezes penso apenas que será este o meu infinito, porque é esta a minha natureza, a miséria.
E sei que já não me fere, mas me não deixa de doer. Admito que a culpa deixou de ser tua já há muito tempo.
Mastigo sobre o mesmo altar, mesmo que o queixo me doa. Mastigo as mesmas folhas, das mesmas árvores, em estações diferentes. E quando a estação não permite, e a folha não existe, vasculho entre os cantos recortados de cada sala para poder mascar nem que seja lixo.
Mastigo sempre, intermitentemente, por vezes parando para descansar o maxilar, doutra continuando para torturar. É cómico como a tortura e a dormência dormem de mãos dadas, em lados diferentes da cama. Há que se sentir tudo, para não se sentir nada.
É como se toda as nossas alegorias vivessem em cada poro. É como se tu vigiasse a minha sombra e ficasses para sempre colado a ela, sem nunca me tocar, nem me deixares de tocar.
É uma eterna escuridão e ao mesmo tempo luz, uma eterna graça que me rói e ao mesmo tempo me faz inteira.
É como se não pudesse viver sem pensar que estou a morrer aos bocados.
É como se não pudesse ser feliz, se não for para contrapor com a tristeza.
É esta a minha natureza.
A miséria.
A miséria de não poder deixar de mastigar os escombros da tua sombra, de uma alegoria que já não é tua, mas que precisa de rosto e o teu serve.
Não arrefeces o ego nem tens vergonha de me cuspir na cara que não me queres a deriva, se não me tiveres ao lado.
Dizes-me ser esta a tua paralisia, alimentares-te de mim para que eu também te seja música ou poesia.
Temos de lamuriar, para poder criar. Tu sabe-lo e eu também. Assinámos silenciosamente este contracto, para que nos arrastemos mutuamente.
Cuspo, e levo à boca mais escumalha. Há que mastigar, há que fazer com as que nossas sombras se descolem o suficiente sem deixar que se anulem ou repulsem. Há que deixar o fio algures para puder voltar a ser puxado, em nome da miséria, em nome da criação.
É uma constante tortura. É uma constante adrenalina.
O chicote da memória não é, no entanto, mais poderoso que qualquer morfina.
É lembrar para não esquecer. É esquecer para não lembrar.
Lau'Ra
CORAÇÃO, TODOS TÊM
Ela precisa que a encoragem
Mas vejo que ninguém o faz
Acredito na camaradagem
Talvez seja bom rapaz.
Eu sei que neste cantinho
Existem outros como eu
Uma palavra de carinho
É dádiva que cai do Céu.
Uma parte da sua vida
Aqui mesmo ela contou
Ela foi bem destemida
E no Céu não acreditou.
Uma palavra de incentivo
Não fará mal a ninguém
O coração é um amigo
E coração todos têm
A. da fonseca
Assentei praça ao largo da fantasia
Assentei praça ao largo da fantasia
Alarguei horizontes na linha da saudade
Alegrei a alma longe da praça da alegria
Sempre em vielas a marchar além da verdade
Cantei o fado do dó e do ré até ao mi
E ao destino entreguei a aventura da vida
Procurei o amigo na rua que mora em ti
E encontrei-o na hora mais querida
Fui ao rio fui ao mar fui e voltei
Encontrei-te num pensamento de eleição
E para sempre a imagem recordarei
De me perder ao encontro da ilusão.
Tenho Alma de Artista
Nesta tarde triste
meu destino entrou
por esta janela
sofrendo calada
a dor que no peito
carrego com ela
Dedilho a guitarra
que logo se agita
tonta de emoção
Tenho alma de artista
quero é ser fadista!
quero cantar o fado!
Meu canto gingado
com o xaile ao lado
e minha voz rouca
salta-me da alma
um grito de fado
que engasgo na boca
Com os olhos cerrados
e a mão na anca
soltam-se-me lágrimas
húmidas de orvalho
São gotas de esperanto
língua que não canto
sílabas cansadas
lavando-me a alma
Tenho alma de artista
quero é ser fadista!
quero cantar o fado!
Letra que gostaria de ver adaptada a fado
Maria Fernanda Reis Esteves
48 anos
Natural/Residente: Setúbal
E-mail: nandaesteves@sapo.pt
Fado diferente
Vou cantar pr’aqueles
que ainda acreditam
que sou diferente
Tenho a alma pura
E nesta candura
Também eu sou gente
Com este ar gingão
O fado que eu canto
É bem indigente
Veste-se de povo
é pobre e inconstante
não é de ninguém
Não vêem que o fado
me corre nas veias
É meu por direito!
Sei que este destino
Fez de mim menino
Pela vida fora
Já nasci fadista
eu sou é artista
dos sete costados
Para quem duvida
Choro na guitarra
Toda esta emoção
Quem sabe se um dia…
me vejam na rua
e me chamem fadista
Não vêem que o fado
me corre nas veias
É meu por direito!
Dedicado ao Fábio Pujol
Maria Fernanda Reis Esteves
49 anos
Natural: Setúbal
AQUILO É QUE ERA FADO
Quando era puto ouvia
Nas tascas da Mouraria
Cantar o fado com prazer.
O fado ainda ali mora
Mas os fadistas de outrora
Vieram a desaparecer.
Entre viola e guitarra
Eles cantavam com a garra
Dos Lisboetas bairristas.
Camisas desabotoadas
Pois que as engravatadas
Não eram para os fadistas.
Mas por onde passou
Aquele fado gingão
Ali cantado ao balcão
Que Portugal encantou.
Volta meu fado amigo
Quero-te beijar a mão
Sentir-te no coração
Quero gingar contigo.
Com o copo sobre a meza
O Zé ouvia em beleza
Um fadinho fascinado.
Não havia televisão
E quer queiram quer não
Aquilo é que era fado
Mas quem diria que o fado
Andaria engravatado
A passear pelos salões,
Não tem o mesmo sabor
E não se sente o calor
Que saía dos corações.
A. da fonseca
Madrugada sem teus Braços
Madrugada sem teus Braços
noite aberta sem destino
dia-a-dia; passo-a-passo
sem saber do teu caminho ...
Sem saber dos nossos sonhos
da mentira que é a vida
das angústias que deponho
na palavra despedida!
Se me amaste ou outro em mim
já nem sei se o consumaste,
foste embora, sei por fim
que afinal nunca me amaste!
Sigo a vida, em vão, sozinho,
cheia de sonhos aos pedaços,
noite aberta sem destino
madrugada sem teus braços!
Ricardo Maria Louro
Em Évora