Turbulência
Há portas por onde embarcam
Atores de um mesmo destino
Foram eles que o traçaram
As nuvens que sobrevoaram
Suavizaram-lhes o caminho
Em baixo um mar de sargaços
Agita ventos alísios
A turbulência que passa
É sinal que a tempestade
Quando chega não avisa
Maria Fernanda Reis Esteves
54 anos
natural: Setúbal
A Viagem
Segue os passos indolentes de um vassalo que rasteja arduamente em seu legado, praguejando algo em sigilo.
— Pérfido destino!
Enquanto sua própria dor atina, segue em direção à rua calçada com pedras retangulares cheias de musgos e ipês floridos à sua beirada, se recordando das palmas estendidas, da face levemente ruborizada e dos beijos inacabáveis.
À espreita estava ela (a Lua), decorando a noite sombria. Era confidente e guardiã nas demasiadas horas da primavera. Sua única testemunha incumbida. Acima das nuvens ensanguentadas de escarlate, observava.
Repentinamente, algo o acomete, como uma epifania. Estava aprisionado, novamente, em um de seus próprios aforismos. Divagando entre os fatos coagidos e seu mundinho extraordinariamente ilusório. Era como se a utopia fosse realidade e a realidade, utopia. E, sob o efeito do clarão de uma ideia, retomou a consciência por autocompaixão e senso de coesão instantâneo. Meramente, haveria tido sorte. Após recuperar a visão, vagava a centímetros de distância de um veículo célere e descontrolado (percebera).
— Azarão! — fora o que, de fato, pensara.
— Quanto tempo se leva para ir até a Lua e voltar? — refletiu. Por dias, voltou-se para dentro de si, encerrou as coisas pela metade e recusou-se a dormir.
— Jah! Passo horas despertado, arruinando as fortalezas de minha própria destreza com abuso de paixões, devaneios, cigarro e as mentiras de sempre. — percebeu com certo horror espasmódico. — E ainda assim, é mais comovente do que aquela velha clinomania estagnada... — Antes que pudesse concluir os pensamentos, sua língua se movera lentamente enquanto a boca se abria, absorvendo ar suficiente para dar impulso às cordas vocais que, vibrando, se tornaram verborragicamente lacônicas. Apavorado, o vassalo sibilava a resposta por entre os dentes:
— Segundos.
Vou Voando
Eu vou de parapente rente as nuvens.
Olhar distante fito o que é finito.
Me perco pelos tantos tons ferrugens
Abismo feito crio o próprio grito.
A brisa sopra em minha triste face
O vento bate sobre os meus cabelos
Mas nada muda o meu olhar, disfarce
Procuro por teus olhos sem os vê-los.
Eu vou rente aos rochedos, mar aberto
Trazendo um sonho próximo do peito
Desperto quando noto não ser certo
Sonhar com teu amor sagaz, desfeito...
Eu vou voando pelo mar profundo
Levando um sonho grande na bagagem
Eu vou voando pelo mar do mundo
Levando teu semblante, tua imagem.
"No brilho dos teus olhos"
"No brilho dos teus olhos"
Nesses teus olhos toda a vida
Nesse brilho que me ofusca
Olhar que é remédio pra ferida
E com sede minha alma busca
Que se confunde a paisagem
Que revela tanto mistério
Leva-me a uma doce viagem
Esse olhar profundo, etéreo
E se a boca diz muito pouco
Do que na realidade quer
Seu olhar irreverente, louco
Expõe toda verdade que houver
Seus olhos são pura promessa
De sonhos alimentados, ternos
De uma viagem sem pressa
Nos meus moinhos internos
Glória Salles
Ficar no poema
Dói não poder
ficar no poema
como se fica num tempo
inexplicável
como uma paisagem
com que se depara
nos prende
como numa viagem
que ainda não é de regresso
como uma janela se abre
ou como a chave
de que não vemos a porta
ou como a porta
de que não vemos a prisão.
espelho d'água
leva as águas para o mar infinito
deixa-me por aqui esquecida
afogada nas mágoas da vida
angústia nos olhos, na boca o grito.
escrevo, escrevo, seca de vontade
abro as torneiras do pensamento
mergulho o coração num mar de saudade
levo nele guardado o sentimento.
esta vida parideira de tantos dias
cobertos duma cortina de mágoas
faz de meus olhos janelas sem alegrias
vazando por elas as águas.
quem escuta o rumor da vida
nos dias e noites de enfadamento?
estranho estar, p'la vida seduzida!
se a esperança foi numa rajada de vento.
o tempo dentro dos meus olhos morre
e morre dentro do meu peito...
estranho adormecer enquanto a vida corre
ou sonhar assim acordada deste jeito.
é cedo...é tarde, cansada de tudo!
na memória sempre a remoída imagem
o tempo me ignora faz-se de mudo
já perdi a vida... mas, ganhei a viagem!
Papagaio de papel em crise
Quero escrever o que ninguém escreve por ti
na correria e ilusão desse voo ser o primeiro,
no limite a proibição era falta de vento e jeito
nesse papagaio de papel que eu nunca esqueci.
Neste mundo de papeis de consumo em crise
estimulante é a mudança nesta história virtual,
reaprender com as inúmeras quedas em pique
e controlar esse fio por um papel de vida real.
SETECENTAS LÉGUAS
SETECENTAS LÉGUAS
Setecentas léguas segui caminho
Corri, parei, andei, voei, rastejei...
Por terra, mata, rocha e imensidão
Faustoso filme de sortidos cenários
De poder, fraqueza, nobreza e miséria
Chuva e corredeira, poeira e barreira
Tortuosidade, feiúra, beleza e exatidão...
Viajei ileso por tantas sonoras doideiras
De algumas mulheres abundadas de paixão...
Chorei por excêntricos gestos desumanos
E ri-me a valer junto a uns poucos homens bons...
Acariciei crianças sujas e medradas
Possuídas pelo terror das coisas da cidade
Como quando um raio risca o céu em descarrego
Vaguei em longas e perdidas noites de escuridão
Deparei com raparigas, donzelas, ditosas e perdidas
Dentro delas, natureza em fúria e humanidade
Inocência, virtude, malandragem e penúria...
Por mais setecentas léguas percorri jornada
De carona, a pé, no lombo da burrada
Luzes em postes, fumaça em asfalto
Casebres de tapera, bonitos edifícios altos
Asseio e sujidade, delícia e podridão
Continuavam, à minha revelia, sucedendo-se
Viagem estranha dentro e fora do coração
Povoados sucumbindo e cidades nascendo
Moleques roubando, trabalhando e estudando
Eles, de destinos traçados, apenas sonhavam...
Dormi em rede. Também em cama e chão
Antes do sono alguns oravam, outros gemiam
Uns em silêncio sofriam, outros só padeciam...
Acordava em dias gelados e mornos, em manhãs candentes
Nuns ajudava, noutros atrapalhava, beijava e brigava
Ilusões companheiras, amadas dedicadas ou ausentes
Trajeto de alegrias e desventuras, prazer e mágoas
Pujança da vida em desgraças afortunadas
Hoje preparo valise, corpo, alma e humor
Para as próximas setecentas léguas
Nunca saberei onde a trilha dá cabo
Nem demarquei seu confuso início...
Pois se esta velha estrada dá voltas
Não reconheço nem o que é recomeço
Pois o tempo sempre adultera a paisagem...
Viagem
Viagem
Valeu viver viajando,
vagando veleiros vistosos,
voando viagens valentes,
visitando ventos velozes.
Vaguei vagões vaporosos,
virei - visando voar,
varando varas viris,
verás veloz verberar.
Violeiros, viajantes, vaqueiros,
vidas vividas - verdades,
valentes vantagens validam,
vacância vassala virada.
Vi verdejantes vales,
vivi vigiando voltar,
vontade viscosa velada,
valeu valer viajar.
Voltei, vaguei, velei,
vistoriei vagarosamente veludo,
véu virtuoso velado,
vazio vestíbulo vislumbro.
VOU PARA SÃO PAULO DE TREM
Vou para São Paulo de trem
E o rumo do meu ser é ignorado
Vou espremido, ao banco pardo,
Mal e porcamente sentado
E levo nada além d'um olhar aquém...
Ah... Exceto o livro amarelado do Pessoa
Que leio sem jeito ao ritmo sacolejado,
De modo messiânico, à toa,
Concomitante ao desconfiado observar
Das gentes humildes ao meu derredor...
Cá estou eu... Indo para São Paulo de trem...
Vago na bruma cinza deste vagão vago
Porque, rumo certo, quem aqui o tem?
Rabisco este texto no dorso velho do livro
Conspurco o branco rasgado da obra do gênio
Mas eu vou de trem, num deserto povoado
Acompanhado do olhar meu,
Do olhar de todos, do olhar de ninguém...
Pessoa haveria de entender-me, sem me recriminar
De que o rumo do meu ser é mesmo ignorado
E que não posso esperar aqui, apenas sentado
Sem ao menos sonhar que uma poesia
Entranhada neste vagão solitário
Viaje comigo também...