Poemas, frases e mensagens sobre conto

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares sobre conto

Há muito trigo no meio do joio!

 
Há muito trigo no meio do joio!
by Betha Mendonça

Gabriel era dessas pessoas que procuravam com lupa de maior aumento possível as fraquezas alheias e tudo que era de ruim ou negativo em toda a natureza.

Entrava numa casa perfumada. Em vez de elogiar o bom cheiro apontava uma teia de aranha que balançava num canto do teto e reclamava da faxina. Sua mulher tinha belos olhos azuis, mas ele ressaltava seus cabelos brancos.... Se o dia era lindo e ensolarado reclamava do calor. Se cinza e chuvoso queixava-se do frio. Se o jardim estava florido incomodavam-lhe os insetos e pássaros que ali se abrigavam.

Cansada da amargura que seu marido trazia no coração, Helena o levou ao celeiro onde estava o trigo colhido naquele dia e disse:

- Separa o joio do trigo!

O homem espantado com a enorme quantidade de trigo quase não enxergava o joio para ser retirado. Exclamou:

- Mulher, há muito trigo no meio do joio!E ela respondeu:

- Exatamente, Gabriel!Então a partir de hoje para de apontar o joio na vida e olha e aproveita mais o trigo!
 
Há muito trigo no meio do joio!

A Morte da Poesia

 
A Morte da Poesia
by Betha M. Costa

Morreu a Poesia levando ao desespero o Poema, seu mais puro e belo representante na Terra.

De luto, os ventos destelharam céus, lançaram ao mar todas as estrelas e demais astros. Fez-se grande escuridão.

Os mares revoltados quiseram subir até as mais altas montanhas, mas tanta era a tristeza, que eles escavaram com suas águas as profundezas do planeta e lá se esconderam para que ninguém mais os apreciasse.

Como efeito dominó os vegetais retornaram ao seio da terra, os animais calaram-se e se abrigaram em tocas.

Os humanos ficaram com um imenso buraco no coração. Perdidos dos seus sentimentos, não conseguiam se expressar uns com os outros, por que as palavras perderem o alinhamento e suas vozes eram incapazes de propagar sons.

A Poesia linda e pálida estava solitária no seu esquife ornado de orquídeas roxas. O Poema em prantos - por saber ter perdido para sempre sua musa inspiradora – ajoelhou-se ao seu lado cheio de lamentos de paixão. De repente escutou bocejo longo:
- Huááááááá!...Confusa a Poesia se sentou no ataúde a perguntar o que acontecera.

Sem que ninguém dissesse palavra os mares saltaram verdes e azuis das entranhas do planeta e cuspiram de volta ao céu todos os corpos celestes.

Os campos se vestiram de verde, as flores coloriram e perfuraram seus espaços, enquanto as árvores entrelaçaram suas copas e os animais se espalharam como se estivessem no Jardim do Éden.

Os homens e mulheres soltaram vozes em canções e em tantos versos, que apenas naquele instante foi escrito uma quantidade inigualável de livros.

Assustado o Poema perguntou a sua amada:
- Ó bela, não estavas morta?

E recebeu como resposta:
- A Poesia nunca morre, pode ficar sonolenta e às vezes até dormir sono profundo por muitos dias, mas sempre voltará mais forte e inspiradora que antes!
 
A Morte da Poesia

Conto às vezes

 
Ás vezes conto um poema
para não contar histórias
De contos à conta de temas
De poemas ás memórias

Vou do milionésimo supra nada
Ao ínfimo ano-luz do nado
Conto e reconto fado a fada
A cantar um conto passado

E o conto feito poesia
Conta o conto do sentir
Com tal amor e sabedoria
Que nos conta o porvir

Um poema é sempre conto
De mensagem e bem dizer
Contado pelo poeta tonto
Nalgumas palavras a doer

Poema dedicatória aos companheiros de armas:

Zé Torres e Flávio que muito me (nos) tem contado.
 
Conto às vezes

Vim do mar e não sou peixe

 
Vim do Mar e não sou peixe mas, se não sou peixe o que sou? Uma ave aquática?...
É melhor começar a procurar em livros e enciclopédias sobre animais aquáticos para ver se encontro algo sobre mim…
Nada de nada. Não há ninguém igual a mim.
Vou partir para o mar e esconder-me para que ninguém me veja.
Passados anos uma pequena criatura do mar entrou na minha caverna…
A pequena estava muito assustada e como por magia era tal e qual igual a mim…
- Quem és tu? – Perguntou-me a gaguejar a pequena.
- Uma criatura desconhecida.
- E tu?
- Igualmente.
De um minuto para o outro, já éramos amigos.
Tinham passado 25 anos desde que nos conhecemos e agora éramos adultos e já tínhamos de ter tempo para as nossas coisas.
Um dia eu e ela combinamos ir os dois a uma festa que se ia realizar no palácio real.
E assim foi…
No dia da festa estava eu entusiasmado com a música, quando de repente alguém me tocou no ombro…
Virei-me e lá estava ela de vestido púrpura e tiara de vidro.
Passados minutos o maestro começou a dirigir uma música romântica…
- Gostas desta música – perguntei eu com um sorriso no rosto…
- É a minha favorita.
Levados pelo amor começamos a dançar.
Antes que déssemos por isso, estávamos completamente apaixonados.
O casamento foi de seguida e eu usava um fato azul como o mar e coroa cintilante como as estrelas.
Ela, um vestido amarelo como o Sol e um véu dourado muito dourado.
Percebi quem sou e de onde vim.

Beatriz Torres
 
Vim do mar e não sou peixe

A Chama da Sabedoria

 
A Chama da Sabedoria
by Betha Mendonça

Abaixo da Montanha da Sabedoria, morada dos Deuses das Letras, localizava-se o Reino das Palavras Soltas habitado por escritores de duas classes ou castas intelectuais com aspectos físicos
diferentes: os cabeças grandes e os cabeças pequenas. Os possuidores de cabeças grandes guardavam cérebros do tamanho de olivas, mas com rica atividade criativa para agrupar letras, formar fantásticas palavras e delas frases que resultavam em textos bem elaborados.

Os que tinham cabeças pequenas possuíam cérebros do tamanho de melões, com pouca ou quase nenhuma atividade imaginativa.Apesar de esforçados e estudiosos não iam além da mediocridade nas produções literárias, que com muita obstinação e esforço montavam.

Rezava a lenda que os cabeçudos recebiam a Chama Sagrada do Saber direto da mente do Deus do Alfabeto e Ortografia.Os de cabeça pequena tinham como mentores os Deuses Escribas Menores.

Por séculos o pacífico povo esteve separado entre sábios e medíocres, e, parecia reinar certo equilíbrio e aceitação popular...Contudo, um sujeitinho de cabeça pequena (Zerus), inconformado que seu cérebro maior e mais pesado pensasse menos que um cérebro menor e mais leve, por muitos anos ruminou idéias toscas.Depois de o seu lento pensar, elaborou e colocou em ação um plano na tentativa de mudar a realidade.

Em noite escura subiu sorrateira e calmamente a montanha.Invadiu o Palácio dos Deuses. Escondeu-se nos aposentos do Deus do Alfabeto e Ortografia. Quando esse adormeceu - apesar do pouco raciocínio - o intruso surrupiou a Chama do Saber que ele tirava da cabeça para dormir.O contato próximo com aquela força sobrenatural e incontrolável clareou-lhe a mente, como uma explosão ao causar o nascimento de uma estrela.E dono da sabedoria, Zerus jogou a chama dentro de um rio apagando-a para sempre.

A partir dali os Deuses tornaram-se humanos.Como os sábios e medíocres, sem a graça da Chama, todos tiveram que batalhar por conhecimentos.Montar em si chamas interiores e ser reconhecido cada um por seus próprios méritos.
 
A Chama da Sabedoria

A Maldição do Artista

 
Vejo-te solene perante mim mas sei que não estás verdadeiramente aqui.
Avanças na minha direcção, rodeias a minha nudez como que vendo uma beleza que nem eu revejo em mim própria e dás início aquilo que só tu sabes fazer.
Tocas e retocas, deixas-me húmida à tua passagem e embora não me oiças sabes que te agradeço cada momento.
Ao início não percebia onde querias chegar, a tua Loucura leva-me a melhor e transporta-me para lugares muito antes de eu me aperceber do caminho que estamos a percorrer juntos...
Mas agora entendo. Entendo a intenção com que te aproximaste de mim e a intenção que desde o primeiro toque tiveste para que chegássemos onde chegamos. Essa Visão, essa capacidade de saber (não sabendo) o que vai resultar no final é tanto a tua maior força como o teu maior fardo. Essa é a verdadeira Maldição do Artista...
Concluído o quadro, poisas o pincel e a paleta e fitas-me com um olhar de cumplicidade. Soltas um suspiro de satisfação e sorris ao ver onde a tua inspiração te levou desta vez. Apesar de não o veres eu retribuo-te o sorriso porque hoje, graças a ti, eu sou uma tela feliz.
 
A Maldição do Artista

O Beco

 
San Francisco, CA – 1966.

Charlie. 8 anos. Bermuda pouco acima dos joelhos. Camisa listrada marrom. Punhos cerrados. O esquerdo na altura do peito próximo ao queixo, e o direito à frente, para marcar território. Há pouco havia jogado seu boné contra o chão.

Bob. 9 anos. Meias cinza, pouco abaixo do joelho. Suspensório e camisa listrada vermelha. Punhos serrados e cara de mau.

Charlie caminha lentamente em sentindo horário. De costas para a Mason Street, e de frente para os fundos do “Fior D’Itália”. Sua baixa estatura e seu porte físico não estimulam muita confiança. Isabelle aguarda o resultado.

Bob Flecher era conhecido por liderar a gang dos Garotos Gordos. Este sim era digno de aposta. O sorriso irônico no canto da boca incentivava os gritos da torcida.

“Os Gordos” como eram reconhecidos. Não que fossem gordos, mas eram eles que “controlavam” os lanches dos rapazes nos intervalos da escola. Havia também a gang dos Pit-Stop Boys (ou P-SB). Uma brincadeira feita com os pit-stops dos garotos que iam ao banheiro nos intervalos, e que para ter acesso, precisavam pagar o pedágio. Os “P-SB” eram rivais dos “Striker’s”. Um bando de pequenos marginais que roubavam a grana dos rapazes. Sempre mudavam seus líderes. E um líder dos Striker’s nunca poderia fugir de um desafio. O problema é que muitos garotos disputavam a liderança do grupo. E por fim, os “Striker’s” eram os rivais dos “Gordos”.

Bob, quase nunca entrava em uma briga. Era um garoto esperto e tirava boas notas. Seu porte impunha respeito, e ele o usava com sabedoria. Tanto que, quando foi eleito líder, nunca mais saiu. Afinal, boas notas, um titulo de respeito e imposição, eram sinais de poder em qualquer lugar.

Já Charlie não cheirava. Tão pouco fedia. Mas se metia em muitos problemas... Muitos... Muitos... Muitos problemas, por ser namorado de Isabelle. Não há nada de surpresa nisso. As garotas só trazem problemas afinal. Uma suspensão aqui, uma acusação de furto ali, um castigo acolá... Quando não, um nariz quebrado. Não que elas fossem as responsáveis por tudo, mas quando se tem uma namorada, todos fazem de tudo para ver você se ferrar. Incluindo as amigas mais tímidas, que são capazes, inclusive, de tentar te beijar quando a sua garota não estiver olhando. É sinistro. Porém, não da para reclamar de tudo. Uma namorada é sinal de respeito também. Seus pais se gabam para os vizinhos e para os familiares. As tias da cantina lhe dão uma porção a mais... E por aí afora.

Poucas coisas mais divertidas haviam do que uma boa briga. Rolavam boas apostas. E quem conseguisse acompanhar a maioria delas, saberia bem em quem apostar. Apesar dos azarões que, hora ou outra, apareciam para estragar as estatísticas. E esta, sim senhor, foi uma boa briga.

Bob havia roubado o lanche de Isabelle, que reclamou. Sem pensar nas consequências (para Charlie), falou que se ele não devolvesse, chamaria seu NAMORADO. Bob sorriu. Mas quando uma garota de 8 anos diz alguma coisa, é lei. Ainda que isso não mude muito até os 90 anos, continua sendo lei. E conforme prometido, Isabelle notificou seu amado do ocorrido e o intimou a devolver a honra que lhe haviam roubado. Charlie não entendia, naquela época, que o lanche roubado de uma garota era sua dignidade posta no lixo. E, assim, continuou sem entender pelo resto de sua vida. Mas não havia escolha: Ou desafiava Bob, ou perdia sua insígnia. Na visão de Isabelle, claro. Pois para Charlie, ele poderia não fazer nada e seguir sua vida normalmente, ou também não fazer nada, que tudo continuaria no seu devido lugar. Sempre havia uma saída. Mas ele nem precisou se preocupar em escolher. Bob o segurou pelo colarinho e disse apenas: “Amanhã. Três horas. Atrás do restaurante italiano”. Já há algum tempo, Bob se sentia entediado com aquela vida fácil e sem emoção de roubar lanches, por isso precisava de algum divertimento de vez em quando. Normalmente, ele não faria o que fez. Era forte, líder dos Gordos, e respeitado. Não precisava fazer nada. Já Charlie... ... Bom... ... ... Coitado do Charlie.

Caminhando no sentido horário, Bob foi surpreendido com a atitude do adversário. Esquivou-se do soco, que voou solitário no ar. Ele sem dúvida conhecia seu segundo provérbio preferido: “Quem bate primeiro, ganha”. Logo após o: “Bata antes, pergunte depois”. Culpa das noites em que assistia a filmes de ação escondido de seus pais.

Porém, nada aliava a tensão de Charlie. Pelo menos até levar o primeiro soco. Ou o segundo. Ou o terceiro... Enfim, chances de alivio de tensão não faltaram. Apesar de alguns socos bloqueados, Charlie acabou por absorver a grande maioria deles. Bob se divertia. A plateia adorava o espetáculo. Giulio, o garçom, também se divertia enquanto fumava para passar o tempo, antes de voltar a lavar a louça. Por fim, com o nariz já um tanto torto, um vermelhão no olho e um pouco de sangue no canto da boca, Charlie, tonto, quedou. Isabelle, que era a terceira garota mais linda da escola, (segundo pesquisa dos “Garotos Selvagens”, gang aventureira que desbravava a cidade com suas bicicletas) deu as costas, furando o círculo que rodeava a briga e foi embora para casa.

Charlie então, se tornou o garoto mais poderoso da escola.

Naquela tarde, ao cair, Charlie cerrou seus dentes com raiva e levantou-se rispidamente. Dando tempo de Bob apenas iniciar o sorriso sarcástico enquanto ainda estava em pé. Foi açoitado com cinco socos consecutivos na cara e terminou nocauteado, e meio desacordado. Seu sorriso ficou torto no chão.

Naquele mesmo dia Charlie foi à casa de Isabelle para informar que estava tudo terminado. Pela primeira vez alguém conseguiu fazer Isabelle não dar a última palavra. Nas outras oportunidades, ela jogaria algum objeto na cara dos rapazes e saía porta adentro fingindo um choro forçado dizendo que estava tudo acabado. Muda, contudo, observou Charlie ir embora, iniciar o namoro com a garota número 1 do colégio, se tornar o líder dos Gordos, dos P-SB, dos Striker’s, dos Gárgulas, (que surgiram tempo depois) e, pouco a pouco, se tornar um cafajeste ordinário.

Anos mais tarde, Bob se formou na faculdade.

Charlie foi preso.
 
O Beco

A Guerra das Letras

 
A Guerra das Letras
by Betha Mendonça

Numa dessas manhãs onde o sol desmotivado de brilhar fica por trás das nuvens, as letras se rebelaram e começaram uma estranha discussão:

- Chega das vogais se acharem mais necessárias que a gente! Berraram exasperadas as consoantes.

- Mas, o que essas malucas estão a dizer? Indagaram supressas as vogais.

O “S” - que por falta do que fazer tinha criado toda a confusão - se curvou até ficar “s”, tão baixinho que ninguém o via.

Enquanto as brigonas continuavam a contenda, as palavras (coitadas!) é que “pagavam o pato”. Não conseguiam dar as mãos e construir textos. Era tal de: Tufjwkd nxws dmfq!Dgpujkf, geitjaçg hdfo lhtyrp. Nada se entendia!

Até os sábios dicionários explicavam significados ininteligíveis para palavras ininteligíveis. Todos os demais livros não passavam de amontoados de sons sem nem um sentido ao leitor.

Em meio ao caos literário estabelecido, não contente com o bate-boca, as letras partiram para agressão física e a verdadeira guerra se instalou.

Algumas consoantes entendendo que as vogais eram em menor número e estavam inocentes (por conhecerem o quanto era intrigueiro o “S”) passaram para o lado minoritário.

Apesar de entre as tropas de ambos os lados haver certo equilíbrio, a situação foi se agravando e os feridos se amontoavam. Muitas vírgulas foram pisoteadas, os dois pontos e as reticências foram separados. O “R” perdeu a perna e virou “P”, o “P” teve a barriga empurrada para baixo e virou “b”, o E perdeu um dente e virou “F”, o “Q” teve o rabo cortado tornou-se “O”, o “D” levou um chute no meio da barriga que divida virou “B”, o “M” teve uma perna quebrada e virou “N”.

Quando tudo parecia perdido, no meio de tanto barulho, o Alfabeto despertou dentro da Cartilha e com um grito de megafone perguntou:

- Que bagunça é essa?

Ao ouvirem a voz aborrecida do pai, as letras mais rápido que depressa, se arrastando como podiam, entram na Cartilha. Depois de levarem grande broca paterna e esclarecida a necessidade de cada letra para a formação dos vocábulos, as briguentas tiveram suas partes feridas recuperadas. Reina a paz no mundo literário.
 
A Guerra das Letras

Conto de Encanto.

 
Foi naquela estância derradeira
Que a moça largou seu coração,
No mato onde só habita poeira,
Soltou-o ao relento como decreto, punição.

Disse-o em forma de prosa
Para procurar uma solução
Cheirar o puro das rosas,
Escutar o canto dos sabiás,
Para, quem sabe, alguma hora encontrar...
Junto à natureza, de tanto campear,
Um soluço para aquietar,
E o choro mais brando cessar.

Enquanto fazia uso do amargo chimarrão
Lembrando do sabor de alguém com persuasão,
Compreendia que nada valeria a adição
De um pobre coração que só sentia negação.
Portanto, alertou-o que voltasse apenas quando a solidão
Fosse amiga das cavalgadas onde peleavam as almas valentes
Pela estrada junto ao sol poente...

E avisou-o que não retornasse sem alento,
Pois tanto tormento ela não desejava mais não.
Solicitou-lhe para que peça ao seu amigo vento
Que auxiliasse-o no aconselhamento
Daquela sua formação.

E depois de abandoná-lo
Retornou ao seu rincão
Tentando pensar em alguma coisa
Que invocasse a paixão
Mas de nada adiantou,
Teria a moça enfim uma solução
Abandonara o pobre do pequeno coração.

Ao chegar de manhãzinha
Perguntou à senhorinha
Se havia visto um peão
Ela encarou-a sorrindo,
Disse-lhe que lá vinha vindo
Um moço no seu Trovão. (cavalo)

Nada sentiu... mas reconheceu-o
O rapaz que um dia lhe causara tanto des-gosto
Vinha troteando devagarzinho
Sem pressa, pelo caminho...

Ergueu a cabeça, cumprimentou-a
E a pobre sem abatimento
Pediu-lhe o último de seus tormentos:

Moço dá-me um abraço?
Apenas um momento em laço?
E disse-lhe sorrindo:
Abandonei aquele que me faz amar
Não preciso mais de teu amor para poder continuar
Mas preciso do Seu cheiro para poder sonhar.

...Então assim terminou o conto,
Disse para o gaudério que passava
Que de amor não entendia nada.
E nas noites em que perambulava,
Proseava com a lua na varanda do casarão
Uma conversa boba, algo sem tanta condição:
Aonde poderia estar o coração
Daquela pobre prenda que um dia amou sem direção.
 
Conto de Encanto.

As queimadas e os seres da floresta

 
O jovem Kami (sol) da etnia Waurá, caminhava pela floresta, próximo à sua aldeia localizada às margens da lagoa Piyulaga.

Os Waurá habitam o Território Indígena do Xingu, na região ocidental da bacia do rio Xingu, no estado do Mato Grosso. Sendo reconhecidos pela criatividade do grafismo de sua arte simbólica e de suas máscaras ritualísticas.

Acompanhado de sua amiga inseparável, uma onça-pintada, quase em extinção. Criados juntos, desde o nascimento, possuem uma grande ligação transcendental.

Além de sua esplendida cultura, os Waurá possuem fascinante religiosidade, que une os animais, os humanos e os seres sobrenaturais que povoam suas práticas de Xamanismo.

De repente Kami sentiu um grande aperto em seu coração. O cheiro de fumaça impregnava o ar da floresta, carregando a mensagem das queimadas que destruindo a floresta e seus habitantes, magoam o espírito de povos originais, guardiões da mata, seus antepassados.

A Amazônia sofre com o aumento das queimadas. Esses focos não são, devidamente, controlados ou combatidos, por omissão ou, até conluio dos governantes, autorizando, implicitamente, a ação de madeireiros, “grileiros”, garimpeiros e empresários gananciosos do agronegócio.

Cercado por chamas, sufocado pelo calor e pela fumaça, Kami cai desacordado. Sua amiga, que acompanhava tudo atentamente, percebendo tamanho sofrimento arrasta-o, atordoado, até a margem do rio Batovi. Mas devido a tamanho esforço perde as forças e desfalece.

Kami desperta, encontra a amiga desmaiada e clama aos seres da floresta auxílio para salvá-la. O Xamã da aldeia, sentindo tão intenso lamento evoca tais seres sobrenaturais, que choram sobre a floresta, apagando as chamas e dissipando a fumaça.

Banhada pela chuva refrescante, percebendo apelo tão sofrido, a onça desperta, interrompendo a jornada iniciada, e acaricia o amigo agoniado.

Desta vez os seres da floreta e seus defensores venceram, mas, infelizmente, este é apenas um conto.
 
As queimadas e os seres da floresta

A Pena Cansada

 
A Pena Cansada
 
A Pena Cansada
by Betha M. Costa

A Pena cansada de dizer das coisas que lhe mandava mão rebelou-se:

-Não escrevo mais nada!

Entortou-se. Toda cheia de teimosia e silêncio escorregava pela mão desanimada em desenhos ininteligíveis e feios feitos hieróglifos num papiro antigo.

Adulador, o tinteiro tentava convencê-la a mergulhar na tinta azul marinho fresquinha.Falava das coisas belas que a Pena já havia escrito e todos os mares de outras idéias luminosas (ou escuras), que ela ainda poderia passar através das palavras por ela escritas para os leitores interessados em si.

O papel branco se pautou caligraficamente para o caso da geniosa senhora resolver trabalhar e assim caprichar nas letras, que se movimentado sobre as pautas ficariam mais agradáveis a leitura.

A mão acariciava a Pena como a uma filha revoltada.Dizia-lhe de seu amor por si e de quanto ela lhe era importante. Que ambas mais as letras que desenhavam palavras formavam um conjunto harmonioso, que criava histórias, poemas, e, expunha toda a sorte de pensamentos e sentimentos.

A Pena acinzentada - de tanto que já fora usada - olhou para a mão com desdém e sem dó nem piedade deitou-se sobre a escrivaninha para descansar.

Enquanto a mão, o tinteiro e o papel se distraíram em questionar os motivos que levaram a Pena a tão drástica e dramática atitude, um forte vento entrou por uma janela. Soprou ao ar a Pena que voou pela outra janela do décimo andar. Depois de muito planar, caiu na mão de uma criança, que aproveitou o que lhe restava da tinta azul para colorir o céu do seu desenho Depois a jogou no chão, onde a pobre pode enfim descansar...
 
A Pena Cansada

HOMEM-OBJETO

 
HOMEM-OBJETO

Eu estava compenetradíssimo. Encorujado num canto, bailava há certo tempo com a tal valsa que dos trens se desprende, aquela melodia monocórdia e monótona que nos convida a ser par da dança sob os chacoalhos dos trilhos, ruídos em compasso ternário. Embalo que, via de regra, coloca-me num estado de estupor, assim como uma criança de colo que se entrega ao sono quando a mãe cantarola um “nana nenê”.

Embora o conhecido aperto dos assentos dos trens suburbanos, julgava-me bem confortável com o queixo quase colado ao esterno, a cabeça direcionada para um livro firmemente preso dentre os dedos (as mãos firmes de puro receio, pois já tive a experiência de uma vez um livro voar ao longe, direto para a testa de um pobre senhor que cochilava ao lado quando de um solavanco descontrolado do vagão).

Foi aí. Nessa resoluta e amorfa rotina diária. Foi aí que a coisa toda aconteceu. À parada regular de mais uma das tantas e quantas estações. É como eu já visualizasse a sua presença iluminada a romper a abertura da porta eletrônica. Emoções programadas com antecedência, de uma forma tão surpreendente quanto aguardada. Eu, como um daqueles enormes tigres a pressentir no ar a aproximação da presa, munido de uma deslavada naturalidade, despreguei calmamente os olhos das páginas do livro para, vagarosa, meticulosamente suspender com classe cabeça e olhos (primeiro para não me assustar com o que certamente veria, depois para não alarmar ou espantar a própria visão). Foi batata: Ela estava lá. Ela...

A primeira coisa que captei foi o pé calçado de um sapato de salto muito alto, enlaçado numa cor pink, com aqueles dedinhos redondinhos e perfeitos de unhas pintadas de branco com uns minúsculos desenhinhos de flores no meio - tão em moda por essas paragens... - Na seqüência, a canela absurdamente bem torneada e imaginada por debaixo da calça jeans desbotada. Em seguida eram coxas... Ah, que coxas... Eram daquele tipo que todo sacana que se preza sonha em ter abertas na sua cama e suspira ao folhear as revistas masculinas. À medida que a vista avançava - e como era de se prever magicamente desde que comecei a observar os pés - cintura e umbiguinho estavam todos de fora. Porque uma mulher daquela tem plena consciência do material que tem à disposição e não se permitiria cobri-los por qualquer falso pudor... De cada lado da calça (de cintura um tanto baixa), pulavam aqueles espetaculares ossos frontais da bacia, muito espetados, realçando ainda mais o contraste da retidão do abdômen queimado. Na lateral do ventre, em direção ao dorso, ornava uma tatuagem muito colorida e divertida de uma fadinha sentada, risonha, sobre uma meia-lua. “Ah, que menina lúdica essa”, já precipitavam as frases de apoio em meu pensamento enfeitiçado...

E foi justo nesse ponto que eu titubeei. Foi até um tanto triste todo aquele medo. Porque parei e me perguntei: "opa, opa... para que continuar a olhar isso, meu irmão? Pra que sofrer desse jeito com essa visão?" Ah, mas isso durou apenas uma fração de segundo. A raça “homem” não costuma ser muito filosófica nesses claros momentos onde a biologia é a matéria a ser estudada e não a dialética. E foi assim que a curiosidade ganhou longe do sofrimento psicológico... E foram-se os olhos, como uma boa câmera de filmagem nos estúdios de uma pornô-chanchada, com o registro do seu honorífico trabalho.

Então vieram, pela ordem: aquela blusinha branca apertada de algodão muito decotada; o colo longilíneo e firme dos seios - que eram um verdadeiro outeiro dourado que refletia os raios do sol - e aquele pescoço... assim, bem longo e dando fim aos cabelos lisos e muito negros, como os de uma delicada oriental. Mas eu sabia (sem saber) - como sabia sem saber que o umbigo haveria de estar a descoberto - que ela também era linda de rosto. Acho que sabia até antes mesmo dela entrar naquele trem, em qualquer trem... Meus olhos constataram apenas certezas ao verificarem aquelas realçadas maçãs rosadas e queimadas, o nariz pequeno, fino e arrebitado e os olhos enormes e negros, mas tão negros... Eram tão negros que eu me perguntava: “Como alguém pode haver olhos dessa negritude que sejam tão brilhantes ao mesmo tempo? Como poderia haver tanta luz escapando do abismo da escuridão?” E todo esse passeio pelo universo carnal daquela mulher não durou mais do que, vai lá, uns cinco segundos...

Seria mesmo impossível ser indiferente àquela. Nem o mais apaixonado dos homens, o mais fiel deles, poderia ignorar uma fêmea que representava tudo aquilo que significa ser do pólo feminino. Não. Não haveria como. Nem tive muito a curiosidade de verificar como os outros homens reagiam àquela visão. Seria perda de tempo.

E não é que ela se movimentava justo em minha direção? Aquilo mexeu tanto com meus nervos que nem notei que logo ao meu lado vagara um assento. Pois ali mesmo, colada em mim, perna roçando perna, cotovelo triscando cotovelo, ela se sentou um pouquinho atrapalhada com as duas sacolas de compras e mais a bolsa que carregava. De minha parte, só podia achar o embaraço charmoso e bonitinho. Depois, ajeitou-se soltando aquele suspiro de cansaço e, sem titubear, perguntou para mim, assim, na lata, as horas. Que impertinência da moça... Assim, as horas, as horas... “Que diabos importariam as horas?” Queria falar para ela que as horas pararam junto com o meu coração quando ela pôs aqueles pézinhos lindos naquele trem e que, para mim, os trilhos corriam para o sol, ao infinito... Se bem que para não causar tumulto, limitei-me a dizer mesmo, na seca, apenas “as horas”. Falei naquele jeitinho mentiroso que apontavam os ponteiros do meu relógio.

Constatei que a partir dali e até que ela se fosse, eu estaria irremediavelmente perdido. Completamente. Estava tão fora de mim que nada me vinha a não ser apreciar e sentir a presença dela. Veio-me inclusive a triste certeza de que perguntar-lhe qualquer coisa ou tentar o mínimo conhecê-la seria como jogar fora tudo o que eu havia me permitido interiormente, através da idealização daquela presença. E foi assim mesmo que eu fiz. Pus-me, conformado, a fingir que lia o tal livro enquanto o que captava mesmo era a minha pele com a textura da pele dela, a minha coxa enroscando levemente a dela, a minha alma arrebatada a embeber-se dos raios da bronzeada alma dela... Ela? Nem aí... Cansada, reagiu previsivelmente ao chacoalhar do trem e dormiu como um anjo diabólico, aquele do tipo que sabe do imenso poder de sedução da sua inocência.

E foram grandes momentos em que me esqueci completamente de mim e entreguei o corpo àqueles feromônios que pairavam no ar. Porém, tudo que é bom e puro e certo é violentado pelo tempo, esse monstro facínora, esse assassino de toda e qualquer ilusão. Porque, depois de algumas estações adiante o meu belíssimo pecado levantou-se graciosamente para partir com suas sacolas. Percebi nela o derradeiro detalhe: uma tatuagem no antebraço direito onde reluzia grafado entre dois coraçõezinhos vermelhos, em escuras letras corridas e tombadas, o nome: “Lucimar”.

Ai, ai, ai... francamente... Lucimar?! Que raios de nome de amado é esse? Que me desculpem Lucimares de plantão, mas um nome desses a conspurcar eternamente aquele templo de corpo, aquela pele de fogo... Ah, mesmo que achava: Não pode ser um “Lucimar” suburbano qualquer objeto de tanto afeto de uma deusa como aquela e, ainda por cima, merecer registro definitivo em seu corpo, como fosse aquele nome dúbio o mais belo nome dentre os belos nomes... Lucimar, doeu.

Justamente nessas horas de profunda contradição de sentimentos, minha mente toma rumos ignorados. Desejei de todo o coração que meu nome fosse Lucimar – mesmo sabendo que correria o risco de ser perfeitamente possível que um nome como aquele também pudesse habitar um corpo feminino... Mas se fosse para atender os desejos dela... Quer saber? Dane-se. O tesão não tem sexo.
 
HOMEM-OBJETO

As Fifis (rep)

 
As Fifis
by Betha. Costa

Gêmeas idênticas. Batizadas Filomena e Firmina. Desde a infância eram conhecidas no povoado com “as Fifis”. E tudo se dizia delas: belas, inteligentes, extrovertidas, estudiosas... Não havia nas redondezas (nem quadradezas) quem não soubesse das irmãs e as elogiasse!

Muitos anos - daqueles em que os cabelos ficam grisalhos, a coluna diminui pelo achatamento dos discos intervertebrais, os dentes viram pivôs e/ou dentaduras e a lei da gravidade é fatal às mulheres - se passaram para essas doces criaturas.

Enviuvaram sem que lhes fosse dada a dádiva da maternidade que tanto almejaram. Pais falecidos, elas voltaram a morar na casa das suas já distantes infâncias.

Conforme avançavam na idade lhes ocorriam mudanças que deixavam o povo da cidade boquiaberto. Em vez de paciência, calma, compaixão, compreensão e da solidariedade tão comuns a quem amadurece; elas se tornaram amargas.

Amargas que nem as rapaduras e os potes de mel que ganhavam dos vizinhos lhes davam alguma doçura. Tornaram-se tão ácidas e azedas que só de olhá-las as pessoas tinham fortes dores nos estômagos.

Alimentadas por extensa rede de incautos informantes sabiam tudo que acontecia na cidade. FBI e CIA eram aprendizes perto da gama de informações sobre a vida alheia que essa dupla detinha: problemas financeiros, de alcova, distorções de caracteres, quem nascia quem morria...

Nessa época costuraram pequenas almofadas com babados e postavam-nas na janela para descansar os cotovelos. E além de os descansarem, falavam pelos cotovelos!...

Não satisfeitas em “saber” resolveram “alterar” os fatos e vidas das pessoas. Lutas para comprovação de paternidades, divórcios, casamentos na delegacia, desastres pessoais, amorosos e financeiros pipocaram na cidadezinha. Todos sabiam que tudo as Fifis sabiam e pior: espalhavam rápido como incêndio em mata seca.

Toda a gente passou e evitá-las. Não lhes dirigiam palavra.Meses foram rasgados nas folhinhas sem que ninguém lhes desse olhares e ouvidos. Como árvores que precisam de nutrientes e sol, as famigeradas irmãs secaram na janela por falta do que saber e dizer da vida alheia. São até hoje atração para o turismo local que prosperou graças as Irmãs Múmias da Janela.
 
As Fifis (rep)

"Bolsomínion" - a doença

 
Bolsomínion é uma doença causada pelo vírus #bolsonaurus rex. Este vírus é transmitido pelo mosquito "telemídianus golpistas". As pessoas com fragilidade intelectual e muita exposição à televisão e à internet, são mais propensas à contaminação. Essas pessoas são as preferidas do vírus porque, quando contagiadas, são mais resistentes e querem contagiar as outras pessoas de qualquer forma. Como elas não são hábeis com a eloquência, elas tentam contagiar pela intimidação: partem logo para a agressividade. Ai são xingamentos, insultos e força bruta.

Infelizmente a pessoa contagiada é tomada por um sentimento de ódio gratuito: não precisa ser provocada, para ela destilar seu ódio. Basta não gostar, para agredir.
Esta maldita doença se espalhou por todas as classes sociais: A, B, C, D... E não adianta ser portador de diploma de nível superior, que isso não evita de ser contagiado. Este mosquito é imune a posição social, cultura, profissão... Ele consegue infectar, do doutor ao peão.
Só está imune a este vírus, a pessoa que tem Deus no coração, que ama o próximo e que não não tem nenhum "recalque".

No próximo domingo (dia 28), haverá uma tentativa de exterminação deste vírus. Se ele lhe assusta, e se você quer ser um(a) voluntário(a), dirija-se à uma das seções do TRE e combata este vírus digitando 13, na urna eletrônica. Esperamos que a maioria da população brasileira acorde em tempo de evitar a epidemia desse vírus. Porque, se deixar o #Bolsonaurus rex vencer, será pior de que em 1964.

A.J. Cardiais
26.10.2018
 
"Bolsomínion" - a doença

O MENINO QUE DISCURSAVA

 
O MENINO QUE DISCURSAVA

Não sabia bem o que dizer, nem porque dizer. Simplesmente dizia. E como era inesquecível aquela fala. E como as pessoas ao seu redor admiravam-se com a perfeição devastadora de suas palavras. Difícil de acreditar: aquele toquinho de gente, tão precoce – pouco mais de seis anos - e aquele extraordinário dom: a aptidão inexplicável e sublime para comunicar-se com gigantesca arte retórica. Não era só isso. Sua voz parecia influenciar os ouvintes, semelhante à notória fábula O Flautista Mágico dos Irmãos Grimm. Pois hipnotizava através de idéias concisas e sofisticadas, suspendendo a platéia do chão ao ocasionar reações e emoções inusuais ao seu bel prazer, em todos ao mesmo tempo e igualmente. Demonstrava absoluto domínio e compreensão a respeito do psiquismo humano. Talvez ele não pensasse em exercer domínio algum. Talvez ele não conhecesse nada sobre o psiquismo humano. Porém, efetivamente ele dominava e compreendia. Sua arte discursiva não tinha o ranço dos pregadores ou dos políticos que adoram influenciar o populacho, porém, a única forma em que liberava plenamente a capacidade de expressão era quando falava à várias pessoas simultaneamente. Quando isso ocorria era como se uma vigorosa força telúrica tomasse sua boca e falasse nele, embora isso nada tivesse de incorporação ou espiritismo como já conjeturavam os crentes e fanáticos nesse assunto. Nada disso. Quando discursava, era bem ele.

Quanto mais expressava seus pensamentos, quão mais costurava suas avaliações, ainda mais tinha a dizer o menino e sempre de forma mais adequada, envolvente. Suas primeiras conferências despontaram apenas o cume do iceberg da manifestação de suas capacidades. Todos os dias – incluindo os domingos - um novo cabedal importante de aforismos esclarecedores escapava-lhe da boca assim, assim, de supetão, com puro e genial improviso. Sem dúvida o garoto possuía um extraordinário dom: talvez ele fosse um vigoroso canal aberto na natureza cujo destino era o de propagar no formato de palavras os axiomas mais recônditos e insolúveis desta Terra. Ninguém, jamais, o saberia. Nem haveria como.

Veio gente de todos os cantos do país para conhecê-lo. Eram doutores pesquisadores, membros das academias de letras, políticos renomados, religiosos dos mais variados credos, filósofos, antropólogos, literatos, linguistas, enfim, a nata da "intelligentsia" do país. Todos rendiam-se, invariavelmente boquiabertos, estupefatos, àquelas idéias enérgicas e inéditas, à autoridade e controle com que o garoto dissuadia a todos, inclusive eles próprios. Uma inveja abstrata instalara-se neles, mas o fascínio em que estavam enredados era maior do que esses açulamentos mesquinhos. Aquelas audições sem dúvida inebriavam e eles, definitivamente, não queriam ir embora. Recidivamente voltavam para abeberarem-se dos próximos e surpreendentes discursos. Até o comércio de rua foi beneficiado por conta do fluxo extra de pessoas que começou a consumir produtos de todos os gêneros por aquelas bandas.

Para o próprio garoto suas manifestações eram naturais e indeclináveis. Não havia afetação, presunção ou imodéstia em sua conduta. Encarava aquela missão sublime do mesmo jeito informal e displicente com que jogava, vibrando os dedinhos ágeis, seu videogame. Aproveitando os bons ventos trazidos por este fenômeno infantil, a sociedade local progredia muito bem. Os diretores da escola em que ele estudava já quebravam a cabeça para instituir métodos para educar melhor aquele imenso talento sem perdê-lo para outra instituição educacional mais abalizada (e angariar os benefícios da propaganda que sua presença traria para o nome da escola); o prefeito arquitetava durante as noites quentes uma maneira de fazer com que o mundo todo conhecesse aquele prodígio (claro, na intenção de granjear para si vantagens e privilégios políticos) e os pais... ah... esses não cabiam em si de tão orgulhosos. Sonhavam um futuro refulgente para o filho, e, por que não dizer, imaginando uma velhice tranqüila e abastada para eles mesmos graças ao que o menino generosamente poderia proporcionar-lhes através de seus dotes na oratória.

Ninguém poderia contar, nem professores, diretor, prefeito ou quaisquer dos seus ouvintes, quanto mais os seus pais, que um futuro bem diferente o aguardava. Esse improvável destino começou a delinear-se de forma explícita depois do famoso discurso que o menino proferiu no dia em que completou sete anos, como que simbolizando seu ingresso numa idade cabalística. Fora uma dissertação vibrante, emocionada, como se verá em seguida, que ele articulara coadjuvado por sua voz agudíssima de criança miúda, agarrado à uma das colunas do coreto da cidade como ele próprio fora um marujo amotinado segurando o mastro de um veleiro que cruza um oceano rodeado por ventos.

O tal discurso tratava de uma interpretação do Livro do Gênesis que trazia novíssima e definitiva luz à sua hermética compreensão. Costumeiramente ele não falava de assuntos religiosos mas, nesse dia em específico, ele conseguiu, através de sua explanação, tal um passe de mágica e sem deixar margem para sequer uma dúvida, dissipar todas as lacunas, todas as questões obscuras sobre a criação do universo, do mundo e do homem. O mais pitoresco é que o conteúdo da explanação não se investia, de forma alguma, de altercações religiosas. Nem científicas, artísticas ou filosóficas, tampouco. Quem o ouviu não sentiu-se enlevado, ou tomado de sentimentos altruísticos ou de auto-descobrimento, não obteve uma visão definitiva de Deus, de passado, de futuro ou coisa que o valha. Era algo muito, mas muito superior a isso... A praça foi, pouco a pouco, invadida de um silêncio visceral tal era grau de atenção que dispensavam-lhe diante daqueles esclarecimentos.

A figura miúda do menino contrastava com sua voz monotônica e empastada, ausente do mínimo entrave ou engasgo. Não se percebia qualquer forma de hesitação no emprego acertado dos verbos, substantivos e adjetivos. Não se notava pedantismo ou preciosismo na arquitetura de sua linguagem. Assim, o conjunto das idéias expostas patenteava-se ainda mais bonito, beirando o campo da poesia. O semblante das pessoas, conforme as frases pairavam como ventos oníricos, tornava-se sintônico à voz dele: rostos inexpressivos e exatos a ponto de, ao final, todos apresentarem-se iguais, tal fosse uma absurda multidão de empastados gêmeos idênticos...

Terminada a exegese debaixo de uma mudez dilacerante, ninguém desejou regressar as vozes. Cada qual preferiu manter-se quieto. A multidão dispersou-se, parva, acompanhada da mesma expressão facial anulada que a caracterizou durante os vários minutos de audição. Apenas dirigiu-se bovinamente para casa. Os que eram de fora montaram em seus carros ainda meio atordoados e retornaram para as suas respectivas cidades, não sem antes provocarem alguns pequenos acidentes naquelas ruas calmas. E essa foi a derradeira oportunidade em que todos os presentes dignaram-se a parar as suas vidas para escutar as falas do menino. Eles tinham plena consciência de que isso não lhes seria mais possível, nem recomendável. Afinal de contas, quem, mas quem neste mundo poderia encarar outra vez uma manifestação de cabal, límpida, insofismável e insuportável "verdade"? O guri era dinamite pura.

Com passar do tempo, a esmagadora maioria dos que presenciaram o memorável discurso dos sete anos teve que seguir a vida e esqueceu-se e desentendeu-se, por conveniência, do que ouviu. Foi bem melhor assim. Quanto ao menino, confirmou sua fama de precoce: madura e sabiamente declinou definitivamente dos exercícios discursivos e retirou-se para não mais palavrear nem em festas de aniversários de crianças. Quando adulto, tornou-se um ótimo professor da língua portuguesa, o que, diante das circunstâncias, ficou de bom tamanho. Porém, para quem souber ver; quiser ver; poderá notar em seus olhos um brilho aprisionado, misterioso e congelado em forma de cristais em meio às suas íris esverdeadas; isso, desde o seu sétimo aniversário.
 
O MENINO QUE DISCURSAVA

Quem conta um conto gosta de fazer de conta que não aumenta um ponto.

 
 
Vão se os anéis, ficam se os medos.
Antes tarde do que mais tarde ainda.
Água mole em pedra dura, pare com o desperdício!
Quem avisa, algo quer!
Quem tem boca, que fique bem quietinho em Roma.
Antes só, do que abandonado.
Mas vale um pássaro na mão, do que dois extintos.
Não dá pra agradar Russos e Americanos.
Em terra de certo, o ignorante é Rei!
A esperança cometeu suicídio.
Simplesmente através dos ditos podemos dizer aquilo que não é dito, e assim sempre repetido como se fosse um lazer.
Mas como não sou Santo e nem Bendito ou Benedito, assim me farei!
Pois só depois de ter vivido poderei dizer quem sou eu!
 
Quem conta um conto gosta de fazer de conta que não aumenta um ponto.

Amor inacabado

 
Paraty, cidade no Rio de Janeiro, cheia de histórias de outras eras, de um tempo mais lento, hoje destino turístico com lindo casario, natureza exuberante e ótima gastronomia. Mas este conto não é sobre gastronomia.

Viajei a Paraty, fora da temporada, para aproveitar um instante de relaxamento. Hospedei-me em uma pousada no Centro Histórico e fui envolvido em uma história fantástica.

Paraty por ser o porto onde o ouro das Minas Gerais era embarcado para Portugal, parte da antiga Estrada Real, a Estrada do Ouro, também, era o local preferido por corsários, piratas com carta de corso, a serviço da rainha da Inglaterra, para capturarem seus tesouros.

Conta a lenda que um comandante corsário após a conquista do seu butim foi perseguido pela Guarda Real, mas durante algum tempo conseguiu se esconder, abrigado por uma dama da sociedade local.

Apaixonaram-se e viveram intensos momentos de amor. Até que o comandante foi encontrado, preso e sumariamente enforcado. A dama sem saber do ocorrido, continuou a escrever cartas de amor, encaminhadas ao Intendente Geral que as devolvia, sem explicações, até a sua morte.

Hospedado no quarto principal da pousada. Sem saber que era o quarto dos amantes. À noite, em um momento na madrugada, ouvi um tortuoso lamento. Percebi um vulto, a silhueta de uma mulher na penumbra, que apontava para a soleira da porta do quarto e chorava. Quando me aproximei ela sumiu e não mais apareceu.

Ao amanhecer, examinando a soleira, encontrei um compartimento secreto, onde, amarrado por um laço de cetim, hibernou por séculos, um maço de cartas de amor.

Conhecendo a lenda, imediatamente, levei-as ao cemitério do Forte Defensor Perpétuo em Paraty e coloquei-as sobre o túmulo do comandante. Enfim, a Dama de Paraty pôde descansar ao lado do seu amado.

Pesquisando a história daquela dama, descobri que ela havia casado, apesar de não ter esquecido o amor corsário, e constituiu uma família, tendo filhos, netos, bisnetos, trinetos... Para minha surpresa, e de vocês, vim a saber que ela era minha antepassada, de um ramo familiar há muito esquecido. Pois é, a vida é escrita assim!

É um conto sobre o fantástico amor eterno, que ultrapassa gerações e planos existenciais. Para aquele que acredita é uma história sobre apaixonados que superaram a fronteira da existência.
 
Amor inacabado

O Ralo

 
O Ralo
 
Imagem de Augusto Peixoto

O Ralo
by Betha M. Costa

Ao passear no bosque da cidade Dara tropeçou. Era um objeto redondo, achatado, diâmetro cerca de seis centímetros e aspecto metálico. Para examinar melhor o estranho achado ela tentou tirá-lo do chão. Por mais força que colocasse não conseguia. Cavou o solo ao redor e foi impossível desprende-lo: do centro do material seguiam sob a terra feixes de metal parecidos raízes. Seu olhar fixou no minúsculo ponto saliente sobre a coisa. Com o indicador o empurrou como uma trava para a direita. Sem querer ela abriu uma espécie de ralo. Com espantosa capacidade de sucção foi sugada junto com árvores, animais e tudo o que estava próximo. Depois, todos os seres, as águas, as nuvens e o Universo inteiro desceram por aqueles orifícios. Através das ramificações cada coisa foi parar em um lugar diferente. Nunca mais se encontraram para formar o conjunto belo e harmônico como nós conhecemos!...
 
O Ralo

Boca da Noite

 
Boca da Noite
by Betha Mendonça

Desde a infância não gostava da noite. Quando no finalzinho da tarde o sol começava a bocejar e espreguiçar os seus últimos raios ao horizonte, uma estanha melancolia inundava-lhe todos os espaços. Tinha presságios. Frios percorriam seu corpo e uma mão forte lhe apertava o coração. Procurava ocupar-se o mais que podia para que chegasse à hora de tomar seu sonífero e só acordar com o raiar do dia. Essa assustadora sensação tolhia sua vida: não freqüentava lugar algum no período noturno. No fundo de seu conturbado ser sabia que algo terrível e irreversível lhe aconteceria se saísse de casa ao anoitecer.

A família e os amigos inconformados com essa situação insistiam que ela devia sair e enfrentar seus temores. Que seu medo era irracional. E nada era tão diferente pela simples ausência da luz do sol: havia o brilho do luar ou das estrelas e que mesmo sem eles; a noite era agradável, com temperaturas mais amenas... Tanto falaram que ela resolveu: no cair da tarde iria sair.

Quando o sol começou a se despedir, ela e um grupo enorme de amigos e familiares excitados - entre vozes alegres e risadas - caminharam para a margem do rio e desfrutaram do mais magnífico por do sol. Diante da mágica daquele momento distraíram-se em conversas e histórias até que ficou tarde e muito escuro o céu... As pessoas se deram conta que já não enxergavam umas as outras e andavam as cegas tentando encontrar-se. E as vozes foram ficando cada vez mais distantes até que cada qual escutava apenas seu próprio pensamento. Fora de si tudo eram silêncio e escuro. O inimaginável aconteceu: todos foram engolidos pela boca da noite.
 
Boca da Noite

O quadro

 
Um quadro, o retrato de uma era, de um instante perdido, esquecido na memória de dedicado pintor, onde cada pincelada guarda delicadas emoções, sensações profundas, eternizadas sobre tela de refinado linho e, agora, envelhecido pelo tempo.

Preservada, em cores e tintas de outros tempos, a cena bucólica de um momento da rotina de bela e pacata comunidade. Um campo em plena primavera, colorido com as flores da estação, o sol se pondo entre as colinas no horizonte, envolto em nuvens cálidas. No plano principal um córrego correndo preguiçoso em seu leito rochoso.

Compondo com a paisagem, jovem casal trocando longas carícias, beijos e afagos, acentuados pelo carmim das tintas e pela intensidade dos traços. Desmedida paixão imortalizada em arte.

O tempo passou, o casal viveu o seu eterno amor, construiu sua vida em torno daquele lugar, viveu dias de alegrias e tristezas. A terra foi adquirida pela especulação e pela ganância exaurida e abandonada. Como parte de uma dívida foi incorporada à “massa falida”, por um banco.

A propriedade, além das terras, incluía um pequeno chalé, construído próximo ao córrego, agora abandonado, parte do cenário da bela paixão que perdurou por toda a vida daquele casal. Nele, além de móveis e lembranças, o quadro descansava, sobre a lareira, apesar de empoeirado, preservando a imagem daquele momento.

A propriedade foi a leilão, sendo arrematada em um lance vão. Então a incerteza pairou sobre o final dessa história de amor tão perene. O que aconteceria com o riacho, com a terra, com o chalé... O quadro... A história...

Um mês se passou... Um veículo atravessa a porteira. Descem duas pessoas... Os novos proprietários.

Uma nova história começa...

Os proprietários, um jovem casal de agrônomos, apaixonados, amantes da natureza, recuperam a propriedade: o solo usando insumos orgânicos, o córrego protegendo suas nascentes com vegetação nativa. Implantam métodos artesanais de irrigação e plantio, produzem e colhem sua primeira safra orgânica, que vendem à comunidade local.

Restauram o chalé e os móveis, onde passam a viver, inspirados pelo quadro dos eternos apaixonados.

Hoje, ao entardecer de qualquer primavera, os jovens proprietários podem ser vistos, trocando beijos apaixonados, observando o pôr do sol, entre as colinas distantes, embalados pela suave melodia, daquele córrego preguiçoso.
 
O quadro