sexta-feira
sexta-feira. todos os livros continuam em cima da minha tábua de escrita. tomaram outra forma. sabem da chegada do fim-de-semana. está aí um tempo mais longo. mais livre. é um espaço temporal que dá para ganhar uns pozinhos de bem-estar – estes livros. carne da minha carne. sabem do tempo que ocupam. uns riem. outros continuam sérios. outros incharam. como que a dizer que estão prenho(a)s de ideias e brevemente darão à luz. outros ainda. catam pelos capítulos que podem fazer de mim mais feliz. fazem-no como antigamente as mães faziam. quando catavam a cabeças dos filhos à soleira da porta. na maior parte das vezes nada encontravam. deixavam apenas o tacto do amor impregnado nos seus amores – outros livros. discretos. assobiam. parecem distantes de mim. gostam de se fazer de difíceis. mas no fundo no fundo. morreriam por um minuto nas minhas mãos. sabem que tenho para eles sempre um carinho guardado. num bolso escondido detrás de uma costela. que em tempos foi de adão – por último. sobressaem os mais ousados. desesperados penso eu. pelo tempo que já passaram agoniados. pelo que suportam de todos os livros que mais perto vivem de mim – estes. mostram as suas partes mais íntimas. são livros parados no tempo. no tempo deles e no meu tempo. cada vez mais escasso. tudo fazem para ter um lugar dentro de mim. estão ávidos de sentir o meu suor a passar página a página – o meu olhar no entanto. mantêm-se distante. Indiferente. como um pai que de todos os filhos gosta – não escolho os livros. eles são tudo que eu tenho. são filhos que adoptei para conseguir viver. para todos tenho afecto. para todos tenho uma palavra. e todos são agora um pouco de mim – é o dia que me faz escolher um livro. e não o livro que faz o dia – hoje. estou queimado por um vento quente que apareceu do sul. vento sudeste. dizem que traz as areias revolvidas pelos homens do saara. beduínos. criam somente ovelhas e cabras e trazem nas vestes brancas com que tapam a linhagem. todas as histórias dum passado que não termina – sabem-no apenas. porque sabem ler o movimento das areias que esconde a vida. também eu. um dia. deixarei tudo dentro de um monte de areia solta ao vento – ao lado destes pedaços de vida encadernados. e que agora são também meus. tenho um livro especial: é o álbum onde eu cresci. pelas mãos de quem queria registar tudo que eu me propus a fazer – o primeiro ano com um fato azul e branco às riscas. parecia um marinheiro. talvez tenha começado aí o meu gosto pelo mar. depois a minha primeira comunhão. de joelhos. sobre uma almofada bordeaux. seguro um cartilha que me garantia para todo o sempre a minha alegria. olhava para um espaço que nada tinha. mas alguém me gritava de lado para estar quieto. não queriam que eu mostrasse que já naquela idade. tinha dentro de mim um turbilhão de ideias que eram dores – fui crescendo. e até de cowboy apareci. tinha um ar simpático. trazia um lenço vermelho amarrado ao pescoço e o chapéu de alguém que nunca tinha sentido o cheiro de uma pradaria – a estrela de xerife. mostrava um respeito que eu não sentia dentro de mim. mas as pernas não paravam de crescer. e de todas as fotos que um dia espero ainda vir a gostar. porque mostram o mundo que havia ao meu lado. pessoas felizes. os carros. os colegas de escola e até mostram um sol que nunca mais vi – de todas as fotos. guardo no meu olhar especial. uma foto na praia. tinha a meu lado todos os companheiros que me fizeram trabalhador: o baldinho. a pá. o engaço. e o regador. e até as forminhas para poder construir uma vida com imagens que eu ainda não conhecia – naquele areal todo o mar era meu. todas as gaivotas voavam para mim. tudo era tão grande para a minha pequenez. e todos os barulhos eram como se tivessem nascido comigo: o barulho das marés. a bola que corria de encontro ao mar. mas que este sempre devolvia como se dentro dele já existisse tudo que necessitava para se divertir – o homem carregado de rugas trabalhadas por um sol que se misturava com o sal. anunciava uma língua da sogra que eu sempre fazia questão de reclamar – mas eu tinha o meu mundo. e dentro desta moldura no tempo. recordo que estava nu. talvez porque foi assim que nasci. e foi este mundo que me trouxe até hoje – se nu estava. nu estou. a escrever esta sexta-feira.
toada para lembrares de mim numa sexta-feira à tarde
um trecho consistente e claro
do paraíso... esta marca férrea do teu beijo
que me feriu de espasmos o ventre...
volta,
deixa que eu sofra outra vez o céu
- caminhar com as mãos descalças
no teu corpo inteiro...
que o mundo está quase no fim
e ainda não fui suficientemente
triste.
sexta-feira. manhã.
acordei cedo. trago aos ombros o corpo da noite, pesado como chumbo, a noite que me revelou o castigo. talvez o abismo cerebral onde me meto mate os bichos que teimam em comer-me o sono, a que costumo dar o nome de memórias. lá do outro lado de um sono em estado semi-vivo adormeço parcialmente a pele. declaro-me culpada quando abro os braços e sinto a vida prender-me os movimentos. tu andas ocupado com as tuas gaivotas, preperar a fome no mar alto. sonhei que havia um planalto onde secavam meios pares de pernas e braços ao sol, era um sol que queimava, entrava pelos poros quase até aos ossos, fervilhava, borbulhava. sonhei que havia uma árvore dentro da encosta, falava uma língua estranha, coisas da terra hábil, contava a história dos meios pares de braços e pernas que secavam ao sol, que tinham sido cavaleiros do apocalipse, mais tarde tinham sido apenas ceifeiros. a imaginação é um laço que nos enfiam ao pescoço, eu acordei com um laço de corda no meu, bem feito, se me atirasse cama abaixo morria. mas que outra morte desejar senão esta, que outra morte querer com tamanha afeição senão esta que me consome e me persegue o corpo enlatado de revolta. sei de um abismo maior que a encosta do planalto sonhado, menos real, mais catártico. sei dele exactamente no lugar dos meus sonhos. e tu ocupado com as tuas gaivotas.
Sexta-Feira 13
Jogam-se os búzios nas cartas do tarot,
No medo de ontem pintado em disfarce
E no olhar flácido da velha concubina.
Selam-se os dados lançados e os orixás,
Palavra seca que falou e não mais calou
Sem cor nem forma, sombra sem realce,
Na vida assim, enrolada em serpentina,
Folhas rasgadas, notícias boas e más.
Arde em mim o teu gélido olhar
Pasmado sentimento náufrago da vida,
Pássaro aziago engaiolado na mente
Na raiva de ser sem nunca querer.
Raízes minhas que rogo não lembrar
No esporro desta mísera voz escondida,
Na quente lama dos dias, irreverente,
Passos pisados na alma, a tremer.
O impropério que me persegue e acompanha,
Que escolta a banalidade do meu vento
Com rugidos de bestiais corcéis,
Solta-me nas asas de Deuses olímpios.
Feto bizarro de morte estranha,
Que dita as leis deste azar violento,
Crosta desta terra sulcada em papéis,
Pedra sagrada de todos os princípios.
Gritem o velho braço cansado da árvore,
O secular tronco inerte que chora a dor
Ferido de lutos por meninas histórias,
Espadas cortantes em sangue flamejadas,
Em alvas lágrimas que lavam o mármore.
Suicidam-se em campas rosadas de amor,
Saídos de lendas com tamanhas glórias,
Feitiços imortais de bruxas esquartejadas.
Sexta-feira à tarde
Chega o final do dia
uma doce melancolia
apodera-se dos corpos
cansados pela semana de trabalho.
Ardem de desejos os namorados
e antecipam a noite de prazer.
O reencontro.
Chega-se a casa
quem tem casa.
Os outros,
deixam-se estar.