Sexta-feira

 
Porque é o avesso de suave este mundo que me contém, que exubera ocorrências dúbias cujas manifestações se prestam a um aniquilamento gradativo das minhas maiores certezas; chamo o tempo ora cura, ora culpado, das sobras a que me reduzo quando investigo-me o íntimo, desajustada.
Todos os dias são dias de se lembrar e de se esquecer - como é difícil manter o tempo sem memória de mim! As horas são todas filhas das dúvidas e dos medos que as povoam, crescem ligeiras regadas pelas inquietações subterrâneas que me alarmam os sentidos.
Hoje eu só queria encostar-me a um travesseiro de coisa nenhuma e ali dormir por semanas; perder-me do que é vão e do que é preciso; fechar os olhos ao importante e ao fútil; deixar que morra em mim tudo aquilo que não posso compreender.
Queria amputar dos meus desejos os seus impossíveis; livrá-los do meu peso; fazer com que se tornem tão leves que desapareçam, etéreos, feito sonhos.
E acordar talvez vazia, mas sem pressa de viver.
 
Sexta-feira

SEXTA-FEIRA BLUES

 
SEXTA-FEIRA BLUES

The Bluesman guitar:
--"Suas filhas me veem sem dissabor!...
Elas ainda têm a mim por pai,
Mas eu não sou mais o seu amor...
A mulher que amei d'essa vez se vai:
Só me resta cantar a minha dor!"

The Solist girl:
-- "Aquel'outra que tu dizes amar
Se ri do teu chorar louco e em vão.
Põe uma nova musa em seu lugar,
Qu'ela não mais te tem no coração
A despeito do amor ao lhe cantar."

"Pudera eu ser amada um dia assim!
Quisera eu viesses tu a me querer
Amor que não parece ter mais fim;
Amor que nunca nunca há-de morrer...
E, entanto, sei haver dentro de mim.

Chorus:
-- "É só mais uma noite de solidão...
É só mais um acorde e outra canção..."

-- "It's just another night of sorrow
He plays and sings it no tomorrow..."

The Bluesman guitar:
-- "Mulher, porque querer o que faz mal?
Não vês o meu sofrer n'esse momento?
O amor que tanto queres, afinal,
Não é mais do que estranho sentimento
Em meio a um turbilhão emocional."

The Solist girl:
-- "Quem dera ouvir de ti, enamorados,
Os versos que tens tu só para ela...
Quem dera como dois apaixonados
Olhássemos a mesma e só estrela
Mesmo nós dois estando separados.

The Bluesman guitar:
-- "Dois solitários não são um casal!
Duas tristezas não fazem sorrir...
O amor amado em vão não é igual
A, por saber-se vão, se permitir:
Eu amo para o bem e para mal...

Chorus:
-- "É só mais uma noite de solidão...
É só mais um acorde e outra canção..."

-- "It's just another night of sorrow
He plays and sings it no tomorrow..."

Belo Horizonte - 27 01 2017
 
SEXTA-FEIRA BLUES

Três metros quadrados um burro e uma sexta-feira

 
Três metros quadrados não chegam
Para fazer um burro
Três metros quadrados e um burro
não chegam
Para fazer uma sexta-feira
Uma sexta-feira não chega
Para fazer três metros quadrados
Nem com um burro em contrapeso
Quanto mais para fazer um burro
Sem três metros quadrados
A alegria
De haver outras possibilidades
Não chega para apagar
A tristeza.
 
Três metros quadrados um burro e uma sexta-feira

sexta-feira. quase noite.

 
lembro-me de uma sexta-feira, quase noite, a minha mãe dera-me um par de estalos por ter assaltado de improviso a caixa dos chocolates. semanas antes tinha-me dito que ali não podia mexer e lembro-me de pensar, ingenuamente, que ali escondia uma surpresa, para me dar mais tarde se me portasse bem ou se tirasse boas notas. como tal não aconteceu tomei de assalto a caixa. subi ao banco da cozinha, puxei a caixa e abri. eram chocolates embrulhados em papéis de todas as cores, comi um e tirei dois que guardei no bolso para comer mais tarde. o plástico da embalagem escondio no bolso dos calções. as memórias dessa sexta-feira só me perturbam agora, depois de te ler. quando era pequena acordava muito cedo, ia soltar as vacas à tapada, dava de beber aos patos e às galinhas, ia depois para a escola. tinha pela escola uma terrível afeição. quase sempre calada, na última fila a gatafunhar palavras numa folha: lembro-me de mim assim pequena e choro. até da camisola amarela com um laço cor-de-rosa à frente, cores que agora não suporto. até por essa camisola me apetece chorar. já ao fim da tarde vinha monte fora a correr, perseguia borboletas, pássaros, moscas, tudo o que tivesse asas, muitas vezes me distraía das horas às voltas aos pinheiros. e tudo isto agora me perturba depois de te ler.
 
sexta-feira. quase noite.

Sexta-feira 13

 
Sexta-feira 13
 
Passava distraído
Por debaixo
De uma escada
Quando vi
Uma gata negra.
... Dia de sorte...

(Danclads Lins de Andrade).
 
Sexta-feira 13

toada para lembrares de mim numa sexta-feira à tarde

 
um trecho consistente e claro
do paraíso... esta marca férrea do teu beijo
que me feriu de espasmos o ventre...

volta,
deixa que eu sofra outra vez o céu
- caminhar com as mãos descalças
no teu corpo inteiro...

que o mundo está quase no fim
e ainda não fui suficientemente
triste.
 
toada para lembrares de mim numa sexta-feira à tarde

sexta-feira. manhã.

 
acordei cedo. trago aos ombros o corpo da noite, pesado como chumbo, a noite que me revelou o castigo. talvez o abismo cerebral onde me meto mate os bichos que teimam em comer-me o sono, a que costumo dar o nome de memórias. lá do outro lado de um sono em estado semi-vivo adormeço parcialmente a pele. declaro-me culpada quando abro os braços e sinto a vida prender-me os movimentos. tu andas ocupado com as tuas gaivotas, preperar a fome no mar alto. sonhei que havia um planalto onde secavam meios pares de pernas e braços ao sol, era um sol que queimava, entrava pelos poros quase até aos ossos, fervilhava, borbulhava. sonhei que havia uma árvore dentro da encosta, falava uma língua estranha, coisas da terra hábil, contava a história dos meios pares de braços e pernas que secavam ao sol, que tinham sido cavaleiros do apocalipse, mais tarde tinham sido apenas ceifeiros. a imaginação é um laço que nos enfiam ao pescoço, eu acordei com um laço de corda no meu, bem feito, se me atirasse cama abaixo morria. mas que outra morte desejar senão esta, que outra morte querer com tamanha afeição senão esta que me consome e me persegue o corpo enlatado de revolta. sei de um abismo maior que a encosta do planalto sonhado, menos real, mais catártico. sei dele exactamente no lugar dos meus sonhos. e tu ocupado com as tuas gaivotas.
 
sexta-feira. manhã.

Sexta-Feira 13

 
Jogam-se os búzios nas cartas do tarot,
No medo de ontem pintado em disfarce
E no olhar flácido da velha concubina.
Selam-se os dados lançados e os orixás,
Palavra seca que falou e não mais calou
Sem cor nem forma, sombra sem realce,
Na vida assim, enrolada em serpentina,
Folhas rasgadas, notícias boas e más.

Arde em mim o teu gélido olhar
Pasmado sentimento náufrago da vida,
Pássaro aziago engaiolado na mente
Na raiva de ser sem nunca querer.
Raízes minhas que rogo não lembrar
No esporro desta mísera voz escondida,
Na quente lama dos dias, irreverente,
Passos pisados na alma, a tremer.

O impropério que me persegue e acompanha,
Que escolta a banalidade do meu vento
Com rugidos de bestiais corcéis,
Solta-me nas asas de Deuses olímpios.
Feto bizarro de morte estranha,
Que dita as leis deste azar violento,
Crosta desta terra sulcada em papéis,
Pedra sagrada de todos os princípios.

Gritem o velho braço cansado da árvore,
O secular tronco inerte que chora a dor
Ferido de lutos por meninas histórias,
Espadas cortantes em sangue flamejadas,
Em alvas lágrimas que lavam o mármore.
Suicidam-se em campas rosadas de amor,
Saídos de lendas com tamanhas glórias,
Feitiços imortais de bruxas esquartejadas.
 
Sexta-Feira 13

Sexta-feira à tarde

 
Chega o final do dia

uma doce melancolia

apodera-se dos corpos

cansados pela semana de trabalho.

Ardem de desejos os namorados

e antecipam a noite de prazer.
O reencontro.

Chega-se a casa
quem tem casa.
Os outros,
deixam-se estar.
 
Sexta-feira à tarde

Sexta-feira, treze de agosto

 
Sexta-feira, treze de agosto
 
Sexta-feira, treze de agosto.

Hoje é sexta-feira, treze de agosto
Com muito gosto vou agora explicar
Que não dá azar e sim é o oposto
Que até muita sorte pode nos dar

Se caso ver um gato preto passar
Não tenha medo e fique tranquilo
Pois amanhã sua cor não mudar
E um gato andar é do seu estilo

Se há uma escada na sua calçada
Não faça nada e vá caminhando
Pois ela de mal não lhe fará nada

Se ver um cachorro latindo, roco
Pode fazer pouco e fique olhando
Que com certeza ele não é louco.

jmd/Maringá, 13/08/21
 
Sexta-feira, treze de agosto