Poemas : 

A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO

 
"Lembra-te de minha miséria e de minha angústia:
absinto e veneno!
Eu me lembro, sempre me lembro,
transido dentro de mim."

Lamentações de Jeremias, 3ª Lamentação - 19,20



Alef

depois da chuva
veio outra chuva
e mais outra chuva
e nada restou da colheita

Bet

talvez seja eu aquele homem
sufocado
perdido no meio dos escombros
talvez seja eu
aquele homem
no meio dos escombros

Guimel

não sei ao certo se foi salvação
ou castigo
agora é tarde para saber
sei apenas que os dias se tornaram longos
e o pesadelo é fato

Dalet

não consigo mais enxergar estrelas
tudo é treva
só tenho viva a lembrança dos meus mortos
os vivos acho que nunca existiram
todas as pessoas que comigo conviveram
eram frutos da minha imaginação doente

He

de mim também guardo poucas lembranças
a mais importante vem do tempo
em que eu transformava licores em fel
bebia o fel com gosto
e depois me punha a esperar a morte

Vau

passava parte dos meus dias trancado
na sala repleta de livros
aprendendo a arte de adivinhar o futuro
e os meus laços com a morte
ficavam cada vez mais estreitos

Zain

raras foram as noites em que a morte
não me vinha visitar
chegava pudica
sua fisionomia era limpa
sem nenhum sinal de horror no rosto
a morte me beijava a boca
acariciava os meus cabelos
sussurrava em meus ouvidos
e me deixava adormecer no seu colo
quando amanhecia
a música suave
como a respiração de uma criança
me trazia de volta à vida

Het

também não posso esquecer
da ternura que os cães
principalmente os enxotados e doentes
me ofereciam
quando o ar era escasso
e o desespero incontrolável
os cães se aproximavam de mim
e lambiam as minhas feridas
sem nada pedir em troca
nem mesmo um afago breve

Tet

muitas vezes experimentei a sensação
de um pássaro
encolhido nas penas
sem o menor desejo de voar
pássaro covarde
que renunciou à liberdade das alturas
pelo limitado espaço da gaiola
em troca da ração diária de alpiste

Iod

agora nem céu nem gaiola
nem alpiste
meus cães estão mortos
e a morte
porque não transformo mais licores em fel
me despreza

Caf

sinto o fio da navalha no pescoço
e a grossa baba a me cair
pelos cantos da boca
minha arma é o grito
mas as pedras não o escutam
e os insetos me ignoram

Lamed

ó deus dai-me um pouco de temor
para que eu vos possa temer
arrancai-me do peito a descrença
apontai-me os abismos mais profundos
dai-me a fúria dos desesperados
a indiferença dos loucos
e o riso débil dos felizes
para que eu torne a acreditar

Mem

faltam-me as lágrimas
gostaria de poder chorar como as mães
que perderam seus filhos nas guerras

Nun

queria muito ser como os rios
que desde a nascente sabem o caminho do mar
queria ser como os ventos
que desconhecem o cansaço

Samec

ó minha cidade
desejei tanto vos declarar o amor
que nunca senti
prostitutazinha de concreto
perdoai-me
nunca serei o vosso poeta
nunca escreverei em versos a vossa história

Pe

tive as malas prontas
mas as partidas ficavam para o dia seguinte
quando tudo parecia consumado
uma mulher surgia na minha frente
caía de joelhos aos meus pés
a implorar para que eu não fosse

Ain

sempre fiquei não querendo
perdi a conta de quantas três mil vezes
neguei a mim mesmo
escondido atrás do muro da minha vergonha

Sade

quando me negaram pão roí as unhas
quando me negaram água bebi restos de
tempestades antigas acumulados na memória
dos meus piores dias
deram-me por morto nos combates
em que não estive
e gravaram o meu epitáfio
nos banheiros imundos
dos antros mais ordinários

Cof

hoje sei que só as putas
me amaram de verdade
por alguns dinheiros
elas desnudavam seus ombros
cheios de cicatrizes
para que eu depositasse minhas lágrimas
sobre eles

Res

uma sensação de alívio porém me envolve
nesta hora em que o final se aproxima
vou levar na mochila aquelas poucas frases
que não consegui dizer
nas ocasiões de festas ou funerais
vou levá-las comigo
e depois trancá-las a sete chaves
no cofre de pedra do meu silêncio

Sin

ainda não decidi mas devo levar também
uma camisa florida
adquirida num bazar de caridade
nunca a usei
mas a estampa servirá de recordação
da primavera que esperei em vão
não posso esquecer
as minhas surradas sandálias
de couro cru
caso eu mude de ideia
elas me farão lembrar
o caminho de volta

Tau

toda despedida é inútil
amanhã no porta-retrato
meu rosto estará mais velho
e minha barba mais branca
mas se por acaso nada disso acontecer
meus amigos eu suplico
não sintam piedade de mim
matem-me para sempre

______________

júlio


Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/09/2009 12:02  Atualizado: 21/09/2009 12:02
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
Júlio,

Salmo, salmodia, cantochão, oração, ou de como do peso do passos perdidos, se pode elevar um belo hino sobre o tempo de passagem.
(Lia o(s) poema(s) e estava a ver-me no Muro das Lamentações).

DM


Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 21/09/2009 14:05  Atualizado: 21/09/2009 14:05
Colaborador
Usuário desde: 28/01/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 2171
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃOp/Julio Saraiva
Uma canção plangente melancolica, dado aos açoites da vida...mas quem não se lamenta estranho sujeito é...Bela e triste expressão pública dos sentimentos.Dá para estudar á cartilha.
beijocarinhoso, Lu


Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 21/09/2009 15:34  Atualizado: 21/09/2009 15:42
Administrador
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Mensagens: 3764
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
reconheci algumas letras do alfabeto arabe, principalmente Alef, que se a memória não me falha representa um ponto (não sei onde) onde é possível ver todo o universo.
tive alguma dificuldade em relaccionar as letras com os versos, mas também isso não é importante, tendo em conta que a imaginação pode levar-nos até ao infinito´..., uma vez que tu presenteias um conjunto de estrofes ricas em pormenores, recheadas de ilustraçoes negras e perturbadoras sobre os estados d´alma e não só.
´
beijo







Enviado por Tópico
Maria Verde
Publicado: 21/09/2009 15:35  Atualizado: 21/09/2009 15:35
Colaborador
Usuário desde: 20/01/2008
Localidade: SP
Mensagens: 3489
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
Sábio... sábio...
abraço júlio!



Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/09/2009 19:26  Atualizado: 21/09/2009 19:26
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
vale a pena ouvir o teu lamento. aliás vale a pena ouvir-te em qualquer sentimento.

abraços


Enviado por Tópico
AnaCoelho
Publicado: 21/09/2009 20:35  Atualizado: 21/09/2009 20:35
Membro de honra
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Localidade: Carregado-Alenquer
Mensagens: 11255
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
Quero comentar e não como o fazer, apenas digo senti um forte arrepio nestas palavras...tocante e no paradoxo das coisas sentidas um poema lindo.

Beijos



Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 21/09/2009 20:45  Atualizado: 21/09/2009 20:45
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Localidade: Porto
Mensagens: 3357
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
Comentar-te é como desvendar o código de Da Vinci, deixo-te os meus parabéns e um abraço.


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 22/09/2009 00:49  Atualizado: 22/09/2009 00:49
Colaborador
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Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: A ÚLTIMA LAMENTAÇÃO
arrepiante,contundente e belo.
comoventemente humano.

soubesse eu usar as palavras como tu e saberia comentar-te.mas mesmo não sabendo o faço,porque tenho de exprimir de quando em vez a minha enorme admiração pela tua arte.

um abraço

alex