Cântico Triunfal
I
Nada é mais injusto que a consciência humana. Ter-se ciência é, muita das
vezes, quando não sempre, o passo entre o sucesso ou a tragédia. Temos junto
de nós o conforto de quem nos ama, ele nos conduz a nós próprios, porém
teimamos em não vê-lo, e persistimos, num egoísmo tão sóbrio quanto parcial,
em sermos sós, espécie em declínio, a necessitar de protecção. Dai-me só um
momento de fraqueza, um espasmo de solstício, e deixai-me assim, nas sobras de
mim, no âmago das cousas.
II
Raros não são os momentos em que, perdido nos meus pensamentos, dou por mim
esquecido, e já pertenço ao que fui buscar lembrança, como quem se vê
duplamente por fora e não reconhece o que está a ver.
III
O homem é tanto maior quanto maior é o seu desamor às coisas, e é por isso que
o amor total é a perda deste em desfavor do homem. (Plácidas palavras não
renunciam a verdade dos factos, são consequência de um passado algo distante,
de acordo com um presente marcadamente ausente.)
IV
“Amar perdidamente está para a loucura, como a loucura está para o suicídio”
V
Conforta-me o pensamento de nunca precisar pensar em nada, para além de um
simples Instante, em que pensar é nada mais do que isso.
VI
Hoje, acordei eufórico, não porque estivesse eufórico, ou algo parecido, ou
por semelhante coisa exterior a mim, mas porque não o sabia dizer e sentia--o
como que à flor da pele, superficialmente como que num ranger de dentes e
porque, abrindo a janela de meu quarto, não reparei na flor, que agora guardo
pousada dentro dos meus olhos, rubros de um cansaço Inútil, quase morno, quase
febril, de a tudo se darem sem obrigação nenhuma.
VII
Mas se falasse de amor diria que amo, e isso sem qualquer equivoco ou
retrocesso de espécie alguma, não se ama a ninguém sem esperar desse alguém o
melhor que há em nós, se a isso se chama amor, então eu amo, como o melhor que
há em mim, e está tudo dito.
VIII
Vi nas águas paradas de um rio o meu reflexo, mas não eram meus os olhos que
das águas olhavam pra mim, como numa imagem sonâmbula de si mesma, eram doutro
que não estava ali, e esqueceu de levar o pensamento atrás de si.
“Águas deste mar a que me conduzo sem razão, meu ser é perdido e tão
pequenino, quem lá fosse achar-lhe sentido – ó mar! –, pequenino seria e seria
assim...”
IX
Que todo o homem é profano, que todo o homem é omisso, que não cuida quem
cuida, cuidar-se bem (a si como ao outro), vazios de alma que são de hoje e de
sempre, alimento de uma sociedade desequilibrada emocionalmente, quem dera
inda assim o tempo das luzes, aonde descobrir era o segredo que ia nas asas do
vento e o próprio vento todas essas coisas em segredo.
X
Carros! Máquinas! Barcos! Comboios, de alta velocidade! Ah, quem dera, tudo
isso, nas veias! Rasgando-me, uma e outra vez! Cuspindo-me longe, de encontro
os muros! No focinho da palavra! Como quem grita desesperadamente! E ter todas
as mães sem ter filhos e todas as mulheres que são viúvas escutando o meu
grito, de olhos fechados.
Calculadoras! Computadores! Altas engrenagens! Fornos e geradores! Cabos, de
alta Tensão! Televisão! Foto-montagem! Ultravioletas! Passarelas de néon! E o
mais que haja! E o mais que haja! Quero tudo isso na carne! Violando-me os
sentidos, perversamente acordados.
Hip-la-ô!!! Hip-la-ô!!!... ser eu todas essas mulheres que são mães, que não
têm seus filhos por perto, e todas essas mulheres que são viúvas, de olhos
fechados.
XI
Sou uma espécie de vagabundo compulsivo, mas com coração ou, se quiserem,
consciência, o que é um óbice para quem quer mudar o mundo. Como sou egoísta o
bastante para não precisar de ninguém, para querer nada, e nas sobras do ego o
romantismo é um eufemismo, com que me divido, entre um e o outro, nos raros
dias em que a paz é sustento de mim e se prazenteia na consumação do delírio
inicial.
XII
Trago uma criança pela mão. Ela é pura, de olhos limpos. Sua pureza incomoda e
frustra o comodismo. Mas a criança que trago junto a mim é pura e não entende
a linguagem dos homens. Por isso segue sorrindo e cantando e os homens não a
entendem e ela sorri. A criança que trago pela mão gosta de se divertir e de
não pensar em nada. E sorri e canta e ama e brinca com os gatos e ouve música
clássica e lê e escreve, escreve muito, diz ela que talvez assim a percebam
melhor porque sorri quando não a entendem. A criança que trago junto a mim é
pura e vê com os olhos do coração.
XIII
Vagamente absorto, vagam por mim vagarosamente águas plácidas de meu ser, que,
de absoluto, vagueia, qual irreal conceito do outro, que fizesse de mim um ser
duplo, uma e outra vez incessantemente.
XIV
O menino, que dorme à noite sozinho, pede a deus pelos seus amigos. Mas ele
não sabe rezar, o pobrezinho, e ali fica, joelho no chão, olhar posto no
travesseiro, uma com a outra, as mãos. Que reza eu não sei, mas isso que
importa, se tudo o que ele diz, di-lo baixinho e a ninguém incomoda. Dorme,
menino, dorme em paz, e que o teu jardim seja sempre o mais florido, e, o que
lá puseres, o eterno amanhecer. Dorme menino, não regresses ao corpo e
descansa em paz.
XV
Tu que passas por aqui e trazes a sabedoria contigo, se vais e passas e levas
a sabedoria contigo, não passas nem levas nem trazes sabedoria nenhuma.
XVI
Quão frágil o pensamento, quão previsível o seu estudo, só a Natureza tem
filosofia.
XVII
O homem é um animal de hábitos que, não sabendo gerir os seus impulsos, viu-se
na iminência de se auto-destruir, como forma única e viável para a sua
sobrevivência.
Ah, quanta metafísica, há nisto tudo, e nenhuma metafísica!
XVIII
Já repararam na beleza de quando uma palavra é livre, sem pedir meças nem
perdões?
Assim é a minha poesia: letra sem freio, que vai de encontro aos muros da
desgraça, que não cala nem fantasia mais do que é possível à fantasia,
desdenhando de todos os críticos bastardos, que não sabem o que é um poema,
parido do mais alto do poeta. Ah, preferia rasgar todos eles, rasgar todos os
meus poemas, a escutar um único crítico, negro corvo de uma nova inquisição,
masturbador passivo, que mais não faz do que repetir-se uma e outra vez, na
clausura da sua deformidade intelectual. Hurra! Hurra! O poema, Zzzzzzzzz-t!
Zzzzzzzzz-t-t-t! E é pau! Pedra! Gaze! Lilás! Talvez! Às vezes! Cisma!
Delírio! Fome! Que te consome! Hurra! Hurra! Hip-la-ô! Água! Gavinha! Colibri!
Asa! Pássaro! Avião! Astronauta! Argonauta! Pirata! Caravela! Vento! A
barlavento! Ah, quanta poesia, cabe em tudo isso, sem precisar de rima nem
verso! Eh-lá-ó! Eh-lá-ó!... E assim sigo esta minha estrada, ora criança,
amando e sendo amado, ora homem, amando e sendo odiado, mas vertical e sem
arrependimentos.
XIX
Fecham-se as portas, atrás de mim, desço o corredor, do mais amplo de meu ser.
Aqui me encontro com o que, sem pensar, penso que há em mim. E quando a alma
se agiganta nada perece, tudo se transforma: E eu já só sou aquele que todos
querem e o que todos invejam.
XX
Não me conheço mais do que saber-me sentido, e, por isso, sou o perfeito
desatino, com que me confundo e recomeço.
XXI
Alma sobreposta a outra alma, não faz uma alma maior, a cada alma a alma que
couber. Mas mi alma é muitas e não quer saber de nomes, só que é alma e que
tem muitas almas dentro de si. Por isso é que eu nunca sei se vou ou se fico,
quanto alinho há em mim, quando é nas sombras que deposito o ser-me assim. Mas
e a vida que não espera, a semente quando tarda? Ah, quanto de mim, há em ti,
tu, que me lês?!...
XXII
Hip-la-ô! Hip-la-ô! O poema! O fonema? O teorema? Uma flor de açucena! Hip-
hip!! Hurra!!!... Hip-hip!! Hurra!!!... Chiiiiiiiiiiii! Pffffffff-tu-tu-tu-
tu...!!! Próximo apeadeiro, Tabaqueira, é favor de recolher a sua cabeça para
dentro, o comboio parte dentro de... agora mesmo... PiUiiiiiiiiii.... Pouca-
Terra! Pouca-Terra! Adeus! Adeus! A deus! O que é dos homens?
Jorge Humberto
18/04/05