O quarto é escuro e bolorento...
T está encostado junto a um sofá roto, deitado no chão a segurar uma folha de jornal rasgada... olha para a janela suja e fria, por onde a luz dos candeeiros cria sombras fugazes...levanta-se, vagarosamente e fecha a cortina rasgada...um pouco de claridade da lua ainda entra no quarto, iluminando uma pequena mesa com um telefone...
T senta-se,pesado, no sofá e pega no telefone...marca, lentamente, um número...
T: Tou...sou eu...queria ouvir a tua voz...
...
T: Eu sei...estou bem...não, não me esqueço de tomar os comprimidos...
...
T: Sinto-me só...tenho saudades tuas...quando chegas?
...
T: Não, não me esqueço de tomar os compridos...gosto de ouvir a tua voz de mel...
...
T: Sinto a falta do teu toque de veludo...queria tanto que estivesses aqui...
...
T: Queria que me afagasses o cabelo...passasses os dedos longos pelo meu rosto aspero...
...
T: Porque que demoras tanto? Não vens?
...
T: Não...não me esqueço dos comprimidos...trazes os miudos?
...
T: Gosto do barulho que fazem, da alegria que dão...
...
T: Olha, precisamos de falar mais...preciso de conselhos, da tua sabedoria...as pessoas, os idiotas, magoam-me, ferem-me, arranham-me...
...
T: É, dizem-me coisas impossíveis, só para serem más...queriam fazer-me mal...querem que seja infeliz...
...
T: Não, não me esqueço do tomar os comprimidos...as pessoas queriam que eu tomasse mais, mas eu não tomo...más...estúpidas...todas sem um pingo de amor...invejosas...
...
T: São estúpidas... não sei...quando vens para tomar conta de mim?
...
T: Preciso tanto de ti...do teu sorriso de cristal...não vens?
...
T: Sabes aquela foto tua na neve? Perdi-a...queimei-a...queimei todas...por causa das pessoas más e das coisas ignorantes e sem sentido que dizem...Teve de ser...não fiques chateada...anda...vem...
...
T: Mas tenho a tua foto e a dos miúdos aqui na minha mão...mas queria-vos aqui...a foto não chega...
...
T: Fotos também são ilusões...o teu toque é real...anda...anda ter comigo...acaba com a minha solidão...
...
T: Não, não me esqueço de tomar os comprimidos...estou cansado...espero por ti deitado, pode ser?
...
T: Fome...fome só de ti e do teu toque..anda...estou cansado...anda...
...
T: Volta para mim, meu amor...
T deixa cair o telefone e levanta-se, sonolento, embriagado, tosco, comatoso...caem os compridos ao chão e espalham-se pelo tapete sujo e poeirento...
T recolhe-se numa manta junto ao chão e adormece... da mão cai-lhe um recorte de jornal rasgado, com uma foto de uma rapariga e de duas crianças...o titulo, iluminado pelo luar..."Jovem e dois filhos morrem em trágico acidente de viação"...
O telefone, fora do descanso, repete, vez após vez... "após o sinal...serão duas horas e quarenta e três minutos...beep, beep..."
Um pequeno conto, triste, eu sei, que passeava na minha mente e que decidi partilhar convosco.
Boss