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O Papagaio-Tagarela

 
O nome dela vem do baixo-latim Tartaruca, mas só a conhecem por Tartaruga-Antiga. O segredo da sua longevidade ninguém o sabe. Talvez seja o seu siso. Por exemplo, apenas os seus dois pares de patas e a cauda, também esta curtinha, permanecem ao sol, porque o seu corpo de forma oval é resguardado por uma carapaça óssea e escamosa. Nos dias de maior calor, a Tartaruga-Antiga fecha os olhos e sente o seu corpo deitado na realidade, sabe a verdade e é feliz, porque não tem desejos nem ambições.
Ao contrário do Papagaio-Tagarela que gosta de sonhar e falar, a Tartaruga-Antiga gosta de escutar e meditar. Bem diferentes ambos são, mas une-os um segredo, um segredo quase tão antigo quanto a amizade deles, que merece o silêncio da sabedoria. O Papagaio-Tagarela, ave exótica de plumagem colorida, por emitir sons articulados era por todos reverenciado, o que só aumentava a sua vaidade. A Tartaruga-Antiga escutava-lhe deleitada os discursos sobre as viagens que ele fazia, reveladas com tal rigor que eram um assombro. Ela só conhecia toda a paz da natureza que vinha sentar-se ao seu lado. Por vezes, ouvia o ruído dos chocalhos para além da curva da estrada, mas isso não a seduzia. Quando as tardes de trovoada caíam pelas encostas do céu abaixo e os relâmpagos abanavam o espaço, ela não tinha medo. O Papagaio-Tagarela dizia-lhe:
- A trovoada é uma quantidade de gente zangada por cima de nós.
Apesar da sua imensa sabedoria, a Tartaruga-Antiga desconhecia o conceito de gente. O Papagaio-Tagarela esclarecia-a de que havia gente fina e gentalha, gentil-dona e gentil-homem que, apesar de diferentes, tinham em comum o facto de falarem.
- Assim como eu, compreendes? Eu compreendo o que eles dizem, porque sei falar como eles. Mas, digo-te, eles são doentes e confusos e estúpidos.
A Tartaruga-Antiga escutava-o curiosa.
- O que pensas do Mundo? – perguntava-lhe o Papagaio-Tagarela.
A Tartaruga-Antiga olhava o horizonte e respondia:
- O que penso eu do Mundo? Sei lá o que penso do Mundo. Se eu adoecesse, pensava nisso. Para mim, pensar nisso é fechar os olhos e não pensar. As árvores dão fruto na sua hora, o que não nos faz pensar. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e comer um fruto é saber-lhe o sentido.
O Papagaio-Tagarela contava-lhe exaltado histórias das coisas só dos homens, e a Tartaruga-Antiga sorria, porque tudo era incrível. Mas tinha pena de ouvir falar das guerras e dos comércios… Mas, como não falava como eles, nada lhes podia dizer.
- O que é preciso é ser-se natural e calmo. – dizia-lhe a Tartaruga-Antiga. – O essencial é saber ver e não falar.
- Sim, eu sei ver, mas para falar, preciso usar a linguagem dos homens, que dá personalidade às coisas e impõe nomes às coisas. – esclarecia o Papagaio-Tagarela.
A Tartaruga-Antiga escutava-o paciente.
- Bendita seja eu por tudo o que não sei.
- Se tu falasses, compreendias. – advertia-lhe o Papagaio-Tagarela.
Até que, em tantas tardes passadas com o Papagaio-Tagarela, uma houve em que ambos sonharam o mesmo sonho.
O Papagaio-Tagarela dizia-lhe alvoroçado:
- Ontem à tarde, um homem da cidade falava à porta da estalagem. Falava comigo também. Falava da justiça e da luta para haver justiça.
A Tartaruga-Antiga, olhando o poente, meditava: Mas que tem o poente com quem ama e odeia?
- Neste momento – disse-lhe – vem-me uma vaga saudade e um vago desejo plácido que aparece e desaparece…
O Papagaio-Tagarela interrompeu-a:
- De falar?
A Tartaruga-Antiga respondeu:
- Sempre que olho para as coisas, penso no que os homens pensam delas. Falas da civilização, e de não deve ser, ou de não deve ser assim, dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, com as coisas humanas postas desta maneira, dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Por que não lhes dizes isso?
Pela primeira vez, o Papagaio-Tagarela emudeceu. Alisou as penas, articulou uns sons inconclusivos, mas nada disse. A Tartaruga-Antiga nada lhe perguntou. Meditou, sim, no que lhe havia perguntado. Verdade, mentira, certeza, incerteza, qualquer coisa mudou numa parte da realidade. O Papagaio-Tagarela não mais falou das gentes.
Um dia desceu das nuvens um objecto desconhecido. Tinha uma armadura leve e um papel colorido a ela presa e um cordel numa das extremidades. A Tartaruga-Antiga olhou o objecto e interrogou-se. O Papagaio-Tagarela empalideceu. A Tartaruga-Antiga comentou:
- A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias.
De entre as ervas ouviram-se risadas frescas como um regato e a seguir apareceram duas crianças.
- Deve estar aqui. – ouviu-se.
A Tartaruga-Antiga permaneceu tão silenciosa e redonda que parecia uma pedra. O Papagaio-Tagarela não ousou articular um som sequer. As crianças olharam-no estupefactas.
- Olha, um papagaio! Olá! Diz: Olá!
O Papagaio-Tagarela não estava ao alcance das crianças, porque trepara para um ramo mais alto, pelo que se sentia confiante. A Tartaruga-Antiga permanecia silenciosa e redonda como uma pedra. As crianças insistiram:
- Olá! Olá!
O Papagaio-Tagarela retorquiu:
- Olá!
A criança mostrou regozijo:
- Olha, este papagaio fala!
A outra criança mostrou-se sapiente:
- Não fala nada! Os papagaios só dizem olá. Eles não falam, eles palram. A minha mãe diz sempre: Lá estás tu a palrar como um papagaio!
A Tartaruga-Antiga incentivou o Papagaio-Tagarela a defender-se de tamanha humilhação. Se ele falava com as gentes, podia falar com as crianças e dizer-lhes daquilo das injustiças e das guerras…
As crianças encontraram o objecto que descera das nuvens e deram uma risada de alegria.
- Encontrei o meu papagaio!
E, dizendo isto, puxaram o cordel, e o papagaio elevou-se nos ares, colorido e silencioso como o Papagaio-Tagarela.
Desde esse dia, a Tartaruga-Antiga guardou segredo e, nos dias de maior calor, fecha os olhos e sente o seu corpo deitado na realidade, sabe a verdade e é feliz, porque não tem desejos nem ambições.


(Texto inédito e propriedade intelectual de TeresaMarques)

 
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TeresaMarques
 
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