1.
Todos os dias nascem para serem diversos, para nos dizerem algo de diferente. Bem sei que há rotinas que se cumprem, rotinas que nos marcam e maçam e que só quando se esvanecem compreendemos a sua importância na explicação da nossa própria existência.
E hoje é um desses dias.
O portão fecha-se como se fosse a derradeira vez e, para mim, é esta de facto a última vez, a vez que conta.
Pai, por que ficas em casa, escuto.
Não resisto e olho para trás como se procurasse o som inconfundível das máquinas. Era capaz de as destrinçar, uma a uma, somente pelo ruído, por entre o imenso emaranhado de ruídos, como se cada uma possuísse uma voz própria, um timbre único capaz de se diferenciar por entre a confusão, algo que lhe fosse característico, só seu.
Mas eu vou em frente, embora de passo cansado, arrastado como se carregasse o mundo, todo o mundo naquele instante.
Olho para o horizonte como se desejasse perder-me, com um secreto desejo de nada ver. E nada vejo naquela linha distante para além das palavras que me assaltam.
E as mãos nos bolsos como se tivesse o título da Irene Lisboa, uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.
Pai, por que ficas em casa, escuto.
Tenho trinta e cinco anos e o meu olhar nada vê.
Tão novo, li algures, mas tão velho.
Irei amanhã, logo pela manhã, tirar a senha e aguardar que a minha vez surja.
Nome, morada, data de nascimento...
Centro de emprego.
Preencherei o impresso como se entregasse a minha vida pedaço a pedaço.
Sempre tens o subsídio, aguenta-te.
Beberei um copo, talvez dois ou três.
Pai, por que ficas em casa, escuto.
Caminho. Vou por este passeio, mas não em passeio. Sinto que nem os meus passos desenho, flutuo lentamente, tão lentamente como quem é a própria agonia.
Mergulho dentro de mim, talvez como nunca o fizera antes.
Agora, sim, como se costuma dizer, caí na realidade.
O som do portão que se fecha fere-me. É um punhal que se criva na mente e que rodopia, dilacera-me tal como a voz que persiste e diz:
Pai, por que ficas em casa, escuto.
Toda a minha vida se cruza comigo, enquanto vou caminhando por este passeio, com as mãos guardadas, porque inúteis, na algibeira.
Se tivesse uma lágrima choraria, mas:
Um homem não chora, diz o meu pai, enquanto o cinto desce célere sobre as minhas costas.
E não choro, nunca mais chorarei.
E dói-me mais o eco do portão que se fecha gravado em mim do que a fivela sobre as costas.
Habilitações literárias, pergunta.
Segundo ano do ciclo, respondo.
Um sorriso ilumina o rosto de quem pergunta.
Mas não há rosto algum à minha frente, mas um papel, um papel que me interpela, onde cada caractere por mim desenhado simboliza uma esperança que sinto não ter, que sinto não conseguir agarrar.
Tão novo, li algures, mas tão velho.
Pai, por que ficas em casa, escuto.
Xavier Zarco