Poemas : 

VIDA SEVERINA

 

As ruas da cidade parecem mais desertas neste dia feriado. Vagueante por inacção, errático, ia conhecendo rostos, aqui e ali vagamente familiares, no percurso em direcção a uma qualquer casa de pasto ou tasca que felizmente ainda persistem na Baixa. Foi numa dessas, onde entrei sem lugar marcado nem pré-aviso, que intempestivamente acordei do torpor que me invadia quando ouvi, de onde menos esperava que brotasse voz, um português nem agreste, nem doce, mas que facilmente se identificava como brasileiro. A conversa parecia ir a meio, embora eu que já lá estava há uns bons dez minutos e não tinha dado fé daquele vulto de que visualizava apenas as costas (como na alegoria da caverna de Platão, o rosto estava virado para a parede e descrevia algo que me parecia distante da realidade):
: ...”Nossa Sinhora –desabafava o homem – qui vida a minha. Estou legal aqui, mas fui trabalhar para Espanha que lá pagavam mais. Todos os meses mandava todo o dinheiro qui poupava pra minha mulher e meus dois filho. Quando regressei agora, não havia mulher, não havia filho, não havia casa...Miinha Nossa Sinhora! Não havia nada! E aqui estou, começando de novo, sem um real, sem trabalho, sem tecto pra morar e uns poucos agasalho que na Segurança Social tiveram a gentileza de me ofertar. Vou a Tróia que me disseram que estavam precisando de trabalhadores. Os quatro euros é para o barco e para esta sopa, que o estômago está pedindo.”

*
* *
Sentado numa mesa ao lado, um homem parecia o destinatário daquele arrazoado que os clientes do pequeno restaurante escutavam em silêncio e de início com uma postura um pouco desconfiada. Mas nisso, as mulheres, por curiosidade ou compaixão, ou ambas as coisas, não passam ao lado e, pouco depois, a conversa já se generalizara e uma onda de simpatia permitia ao nosso espontâneo confidente comer condignamente enquanto ia desenvolvendo pormenores sobre a sua vida que me assentavam como murros no estômago. Que se passa connosco, afinal, que vemos, ouvimos e não percebemos, que ignoramos, mesmo quando se passa ao nosso lado, a vida destes “retirantes” que João Cabral de Mello Neto tão bem descreveu nos seu poema dramático “Morte e Vida Severina” ?
São os navios do sonho que procuram as Canárias ou o bilhete de 500 euros para o paraíso Europa de qualquer lugar do Brasil. Vida Severina esta onde já não são as pessoas que se deslocam para a fábrica, mas em que as fábricas são gigantescas autocaravanas, que deslizam incessantemente à procura de novos severinos. “Que morrem de fome antes dos trinta...”. Que nos sucedeu a nós, entretanto, que aprendemos a indiferença, seres esquálidos sujeitos à ditadura da moda e do ginásio, incapazes de cultivar a solidariedade activa, resignados perante o absurdo?

arfemo

 
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arfemo
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/09/2009 20:10  Atualizado: 02/09/2009 20:10
 Re: VIDA SEVERINA
Gosto muito deste cotidiano Arfemo.
Não desliza e nem cai em folclorismos.
Parabéns
Excelente poema!
Edilson


Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 02/09/2009 20:15  Atualizado: 02/09/2009 20:15
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Usuário desde: 13/10/2007
Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: VIDA SEVERINA p/arfemo
meu querido amigo poeta,

os muitos severinos crescem cada vez mais por aqui, embora joão cabral várias tivesse renegado sua melhor obra.ele disse a vinícius de moraes, que o elogiou, que Morte e Vida Severina era uma obra menor e que a escreveu por encomenda, para ganhar dinheiro apenas. não se assuste: joão cabral era neurótico, tomava várias aspirinas por dia, e não gostava de nada, a não ser de música flamenca e dos poemas de sua segunda mulher, marly de oliveira. nunca morri de amores por ele. várias vezes eu o ouvi dizer que poesia não era emoção. em parte até concordo. mas não se faz um poema apenas com ideias, como queria mallarmé. leio este seu texto - não leio, bebo seu texto - e vejo que não foi escrito só por um grande poeta, mas também por um excelente repórter, dissecando um assunto aparentemente banal do cotidiano com extrema mestria.

abraço fraterno, daqui deste outro lado do atlântico,

j.




Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 02/09/2009 20:17  Atualizado: 02/09/2009 21:11
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: VIDA SEVERINA
"E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida)."
João Cabral de Melo Neto

Belo poema Arfemo!


Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 02/09/2009 20:26  Atualizado: 02/09/2009 20:26
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
Localidade: Lagos
Mensagens: 2214
 Re: VIDA SEVERINA
Gostei do seu texto e do tema que nos trouxe: a vida "severina" e severa de muitos que (ainda) embarcam nos «navios do sonho» desembarcando tantas vezes em terras de pesadelo. Gostava de saber responder à interrogação final.

Beijinho


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/09/2009 20:46  Atualizado: 02/09/2009 20:48
 Re: VIDA SEVERINA
A V!da não é poesia, a V!da é real D+...
A V!da tem espinhos, tem rosas, tem de tudo um pouco...Está sufocada de "Ais"
Mesmo não ter estado presente nesse café, ouvi e senti esta história com tristeza no coração...
Dói saber que alguém esta triste e não encontra logo a saída.
Mas aqueceu o meu coração, porque a mesma que desabafava, não esqueceu a Fé,
pois à Nossa Senhora suplicava!

Quanto á tua questão?
Andamos cegos!

um jinho, gostei de te ler,
T!na


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 02/09/2009 22:45  Atualizado: 02/09/2009 22:49
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: VIDA SEVERINA P/ arfemo
Bem...
- quis terminar as minhas leituras de hoje consigo, meu bom amigo, porque tinha a certeza que aqui viria encontrar algo que me deixaria preenchida espiritualmente.
Há autores que seja o que for que escrevam não nos desiludem e é seguramente o seu caso. Havendo naturalmente textos que gostarei mais do que outros essa é uma constatação indiscutível.
Esta sua "crónica" chamemos-lhe assim põe o dedo na ferida.
Para que raio de mundo caminhamos se nos empertigamos de altruísmo. O egoísmo é como que uma doença crónica que corrói a mente humana.
A forma como termina a sua crónica não poderia ser mais esclarecedora desse lamentável estado de coisas...

"Que nos sucedeu a nós, entretanto, que aprendemos a indiferença, seres esquálidos sujeitos à ditadura da moda e do ginásio, incapazes de cultivar a solidariedade activa, resignados perante o absurdo?"

Excelente, arfemo! Grande e afectuoso abraço
Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
Joabreu
Publicado: 02/09/2009 23:24  Atualizado: 02/09/2009 23:25
Muito Participativo
Usuário desde: 10/05/2009
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Mensagens: 78
 Re: VIDA SEVERINA
Portugal de severinos centenários, acolhe agora no seu seio (nem sempre bem) severinos ainda mais severinos. Fez bem em lembrar arfemo, bem como sua pergunta final e primordial.

beijinho
Joabreu


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/09/2009 23:32  Atualizado: 02/09/2009 23:32
 Re: VIDA SEVERINA
Belo texto este entre a crónica e a prosa poética (mesmo que o tema se situe, a meu ver, na linha do neo-realismo, para não dizer da poesia maldita, ou melhor, dada a dureza das vidas por que passam tantos destes severinos e severinas, da anti-poesia).
E uma excelente lembrança de João cabral de Mello Neto.
Gostei,

DM


Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 03/09/2009 00:37  Atualizado: 03/09/2009 00:37
Colaborador
Usuário desde: 28/01/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 2171
 Re: VIDA SEVERINA
Profunda narração poética, que emociona, toca a sensibilidade ,porque é poesia extraida da mais nua e crua realidade,o drama de nossa história,os sentimentos que envolvem os personagens, o infortunio,o conjeturar na dúvida em compaixão,a inabil solidariedade.E o poeta relata lindamente à vida. Beijocarinhoso Lu


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/09/2009 01:14  Atualizado: 03/09/2009 01:14
 Re: VIDA SEVERINA
Prezado amigo Arlindo, está tudo aí; nessas palavras regurgitadas, a exposição de vidas mortas, nuas e cruas, tão verdadeiras no cenário contemporâneo mundial.
Demais; tudo muito bem explicitado acima.
Meu fraterno abraço, poeta.
Silveira


Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 03/09/2009 16:49  Atualizado: 03/09/2009 16:49
Colaborador
Usuário desde: 03/11/2007
Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: VIDA SEVERINA
Muito bom o texto!Faz bem variar um pouco, sair do mar de poesias e ler textos interessantes como esse!Um bom trabalho!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/09/2009 12:09  Atualizado: 06/09/2009 12:09
 Re: VIDA SEVERINA
Obrigada por esse texto tão competente. Os "Severinos" se multiplicam na mesma proporção da desgualdade social e do egoísmo.
Citando:
São os navios do sonho que procuram as Canárias ou o bilhete de 500 euros para o paraíso Europa de qualquer lugar do Brasil

Abraço,
Sandra.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/09/2009 19:35  Atualizado: 06/09/2009 19:35
 Re: VIDA SEVERINA
Meu querido amigo!

Li o seu texto com muita atenção e em dobro os seus comentários aos comentários, e pouco mais lhe poderei acrescentar de útil ao seu texto.

Digo-lhe apenas que por questões profissionais tive que viver dois anos em Luanda, (1996/98) e o que posso dizer é que foi o tempo mais difícil da minha vida, senti pela primeira vez o que é perder as raízes da nossa terra, os filhos, a mulher, a família, os amigos, e para terminar, corro o risco de encher uma página A4 só com as perdas, os meus telejornais e o meu amicíssimo Expresso.

Meu amigo, racismo há em todo lado, eu também sofri na pele esse vexame, pessoas más também há em todo lado, mas pessoas a escrever este sentir dos nossos dias também há.

Resta-nos estes textos para valorizar a nossa dor no tempo.

Um abraço
JLL


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 06/09/2009 20:16  Atualizado: 06/09/2009 20:16
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: VIDA SEVERINA
O humano do desumano vai devastando tudo.
Mas ainda fica o princípio de cada um que pode
mudar o mundo interno. O externo cria Severinos.
Enquanto isso a vida senta na mesa ao lado
e espera. Obrigada.

Bj
Vania