O sapo
Naquela noite eu estava tranquilo; já era cerca de oito da noite, e eu tinha acabado de jantar. Coloquei o prato sujo sobre a pia e, não sei por que cargas d'água, resolvi ir até a edícula que fica nos fundos do quintal. Desci a escada que dá acesso ao íngreme terreno e fui até o interior do cômodo acessório. Ali observei muito sem saber o que buscava, e então resolvi pegar um pedaço de fio dental.
Na volta para o interior da casa, digamos, oficial daquele terreno, na escadaria de acesso pela qual desci até a edícula, galgando aos saltos, patamar por patamar, estava um sapo. Era um bicho feio, meio magro para os da sua espécie; tinha as costas em tom laranja e, como todos os seus anfíbios irmãos, trazia aqueles olhos enormes e brilhantes. Não pensei duas vezes; corri pelo corredor lateral da casa, dei a volta pela sala, adentrei a cozinha, a qual dá para a dita escadaria onde se encontrava o sapo.
Ali, na cozinha, peguei a vasilha de sal; confesso, eu tinha na cara um sorriso maligno; mas peguei a vasilha se sal e, pensando na empáfia daquele bicho horroroso, que só o cão sabe o porquê, ia subindo a escada da cozinha; pensando nessas coisas, apanhei um punhado de cloreto de sódio e mandei bem nas costas alaranjadas do anfíbio. Ele ficou doido; saltou de um lado para o outro até que caiu da escada e sumiu por entre umas bacias que estavam encostadas junto ao tanque de lavar roupas.
Sabe-se que os sapos fazem troca gasosa pela pele e que o sal absorve água; assim, quando se joga sal na pele desse anfíbio ele começa a perder muito líquido e ainda de quebra tem dificuldades para fazer suas trocas gasosas. Com essa idéia na cabeça pensei: esse bicho do demo, que agora deu para achar que simplesmente pode entrar em casa, com esse desespero todo que o sal lhe provoca, nunca mais vai voltar aqui. Guardei a vasilha de sal, fui para a sala, assisti um pouco de TV, até que veio o sono; então fui dormir.
Naquela noite o sono foi um inferno. Eu não conseguia ter paz, era um desespero; durante a noite toda sonhei com coisas sem nexo e, entre os lampejos de sonho, eis que surgia um sapo, ao que eu sempre tinha nas mãos uma vasilha de sal com a qual eu lhes salpicava de todo jeito. Porém sem êxito, pois quanto mais eu jogava sal, mais bicho nojento aparecia; era como se o sódio não lhes fizesse mal algum; pelo contrário, é como se fosse para os nojentos um deleite.
Foi quando senti, de súbito, que um havia tido a audácia de saltar sobre a minha perna. Em um movimento que foi entre a pior repulsa e o maior desespero, eu arremessei aquilo. E acordei nesse movimento tão brusco. Olhei para o meu lençol, ainda meio desnorteado, e constatei, pela mancha estranha, que não era bem sonho. Olhei para a direção que por lógica deveria ter sido arremessado o maligno nojento, e lá estava ele, com aqueles "olhões" que me fitavam; parecia com medo e ao mesmo tempo parecia me desafiar.
Nem quis pensar a respeito, coisa igual nunca se viu; como poderia ser possível aquela desforra que tinha me feito um sapo?! Não tinha o que ser pensado; corri até a cozinha e peguei a vasilha de sal. Agora sim, aquela peste ia ver; quase me matou de susto, e ainda emporcalhou meu lençol. Bicho mais nojento!
Mas parecia que ele já sabia do que eu ia fazer; assim que entrei no quarto, ele se escondeu sob um móvel, atirei-lhe sal com gosto; o infeliz saltou, e, no movimento mais rápido que já vi, desapareceu.
Aquele dia se passou um tanto diferente; quem iria acreditar nessa história?! Um diabo de sapo vingador... Um anfíbio com memória e hábito maquiavélicos... O que era aquele bicho afinal?! Passou-se o dia, e chegou a hora de dormir. Eu já havia dado notícia do ocorrido para toda a minha família, e tive como resposta aquele olhar que condena, como que diz: o que esse infeliz bebeu antes de dormir? Mas a mancha nojenta estava lá, bem marcada no lençol; assim como a marca de sal embaixo do móvel, pois ninguém mexeu naquela parte daquele cômodo da casa.
Antes de me deitar, fiz uma literal varredura na casa. Com uma vassoura, vasculhei cada "cantinho" da casa; sob as camas, sob as mesas, nos cantos sob o tapete (afinal, nunca se sabe o ardil que pode usar um sapo vingativo!). Enfim, fiz quase tudo para me certificar de que o maldito nojento já não se encontrava mais dentro de casa. E me deitei.
Contudo, alguma coisa estava errada; eu tinha a nítida sensação de que estava sendo observado. Eu sentia o sapo ali por perto. Demônio de anfíbio!, onde aquele bicho poderia estar?... Foi então que resolvi pensar como um sapo; se fosse eu no lugar dele, onde eu ficaria de tocaia para pegar aquele que tinha me jogado sal nas costas? Então lembrei de um lugar que realmente eu tinha negligenciado na minha "varredura": o cantinho do guarda roupa, que fica ao lado da cama.
Virei lentamente a cabeça e olhei naquela direção. E o que estava lá, senão aquele nojento par de olhos que refletiam a pouca luz que passava por uma fresta da porta? O sapo! Aquele maldito bicho do quinto dos infernos estava ali; olhava para mim em postura desafiadora; estava de tocaia; estava a me sondar; espreitava meus movimentos esperando... o meu sono para poder me atacar de novo?! Ah, mas ele não perdia por esperar; decidi fazer ele se arrepender daquela clara provocação.
Corri e, ao passar pela porta, fechei-a, peguei a vasilha de sal e chamei o meu sobrinho; uma criança adorável. A princípio ele não quis me dar bola, mas quando eu disse que era para caçar um sapo, ele topou na hora; muniu-se de uma vassoura e veio logo atrás de mim. Entramos no quarto e acendemos a luz. Eu fui direto ao bicho nojento, já com o sal no jeito; mas parece que ele já conhecia aquela vasilha; deu um salto antes mesmo que eu lhe arremessasse o cloreto; foi para debaixo da cama.
A esse movimento do fugitivo, meu angelical sobrinho, que acabara de fazer seis anos, disse que ele iria acertar o sapo, e, levando a vassoura, fez com que o bicho corresse para o quarto vizinho.
Aí sim, o anfíbio miserável estava encurralado. Estavamos de um lado eu e meu sobrinho, e do outro o sapo, com uma parede atrás de si. Preparei o sal em uma colher, cheguei bem perto para não errar, ele ficou desesperado e começou a saltar contra a parede, e eu joguei. É bem verdade que mais errei do que acertei, mas um pouco do sódio lhe caiu nas costas alaranjadas. O bicho ficou maluco, e meu sobrinho, o Victor, ficou em júbilo. Veja só que contraste. Pelo visto, o único concentrado ali era eu, porque tinha interesse no extermínio daquele bicho imundo que poderia voltar durante a madrugada só para se vingar.
Preparei outra dose de cloreto de sódio e mandei bem nas costas, agora toda suada, do nojento; ele saltava cada vez mais desesperado, e eu jogava sal, e o Victor só olhava e aprendia. Até que o bicho teve um rompante de desespero e veio na nossa direção, passou entre eu e meu sobrinho e foi se esconder embaixo da cama.
Eu, a essa altura, já estava disposto a segui-lo até os confins do mundo; ergui o colchão da cama e mandei o Victor dar de vassoura no sapo; mas, veja que ardiloso, o sapo havia sumido. Ficamos sem entender; que sortilégio era aquele? Será que o sapo tinha alguma saída secreta naquele ponto da casa? Pelo menos isso iria explicar sua aparição na madrugada anterior. Mas o danado do meu sobrinho foi muito mais sagaz que o sapo, e, dizendo para retirarmos um tapete velho que ali estava todo dobrado e aparentando não ter por onde entrar nas suas dobras, puxou o trapo e,... não é que o danado do sapo estava escondido ali, bem embaixo do tapete; o miserável do anfíbio havia se murchado todo para poder caber sob o trapo.
A essa literal descoberta do colega de caçada Victor, veio sobre o sapo uma chuva de paulada, muito bem temperada com sal, e muito sal! E joga sal e dá paulada e sapo pula de cá e pula de lá, e sal e paulada e salto. Até que o bicho ficou encurralado de novo. A essa altura já estávamos dispostos a aniquilar o bicho feio. Foi quando, ao mesmo tempo, eu e o Victor investimos sobre o asqueroso ser e lhe demos aquele que seria o golpe final: pau e sal.
Mas o bicho pulou de novo e, por forças creio eu demoníacas, conseguiu ir em direção à porta de saída. Corremos ainda atrás dele, mas o maldito saltou sobre uma possinha d'água só para se limpar do sal e depois se embrenhou sob umas folhas de bananeira que estavam caídas no quintal. O destemido e desmiolado do meu sobrinho ainda meteu a mão na folha de bananeira para descobrir o sapo, mas já era tarde, o bicho do inferno já havia desaparecido no breu da noite.
Aquela noite foi bem agitada; não porque sonhei ou porque um sapo havia pulado na minha perna enquanto eu dormia; mas por causa dos olhos do bicho nojento. Ainda hoje eu me lembro dele me olhando; e ainda hoje eu não sei dizer se ele queria me desafiar e me jurava de vingança com aquele olhar, ou se apenas me espreitava por medo... quem vai saber?... Eu só sei que já deixei o Victor avisado, a qualquer momento, do dia ou da noite, poderemos ter nova caçada; e, dessa vez, vai ser para matar!