Parte III
Estranhamente, todas três param a conversa em simultâneo. Uma voz de comando, quase um berro, sincroniza o momento, interrompendo a conversa entremeada de risos, sobre manias estranhas nos homens. Há mesmo uma premonição em triplicado. Inesperadamente, Matilde recordou o Lobo, o Pastor Alemão. Esperava-a na chegada da escola, no pequeno jardim, sentindo o rodar leve do portão. De um pulo, atirava-se a uma loucura de mimos, festas, latidos e risos. No mesmo segundo, acelera o coração de Maria sem esta dar conta. Revê à sua frente, tal e qual como nesse dia infeliz, aquele vulto. Incapaz de distinguir as formas do rosto, ficou-lhe na memória a sombra e a voz ameaçadora. Maricéu sentiu uma comichão no nariz. Aparecia-lhe aquela electricidade por baixo da pontinha do nariz, quando algo inesperado estava para acontecer.
Ao mesmo tempo que alivia a impressão esquisita, coçando levemente, gira a cabeça para a direita. Alguns berros chamam-lhe a atenção. A garganta rouca, de cerveja fresca e de muita conversa em voz esforçada, impedem, tanto quanto a embriaguez, um discurso perceptível. Distingue-se o grito vindo do fundo, a convicção forte de quem não tem consciência do que diz, nitidamente em “portunhol”:
- Viva la revolución! Viva la contra-revolución! Viva la anti-contra-revolución!
Num gesto bem treinado, Matilde pára a caminhada enquanto empurra para a frente o peso morto. É um movimento preciso, desviando, sem contrariar. Requer o equilíbrio de um ponto de apoio firme, conseguido rapidamente, enquanto aproveita o seu balanço para conseguir mudar a trajectória, apenas o suficiente, para evitar o choque. Aprendeu isso enquanto o cão crescia, fugindo a ser sistematicamente abalroada. O bêbado tropeçou no tapete, à saída do café, e estende-se no chão sem perceber como lá chegou. Sem mais nem menos, Maria faz girar a mala de mão atafulhada, acertando-lhe na barriga com força. Um arrepio sobe-lhe as costas, trazendo-lhe alívio. Não tem certeza de ser exactamente a mesma pessoa, o corpo inanimado no passeio e o ladrão que lhe atormenta as noites, mas sabe que voltará a dormir descansada. A voz é a mesma, pensa para si, justificando. Desata aos gritos, afirmando ter morto o homem, chamando a atenção dos transeuntes que olham, abrandando a marcha. Maricéu tranquiliza-a, pois sabe que dorme apenas, ou talvez um coma alcoólico. Liga o 112 no seu telemóvel, dando todas as indicações necessárias. Sabe também, que as três se fartarão de rir deste episódio, que firmaram uma amizade para sempre.
(Fim)
Boa semana!
Garrido Carvalho
Agosto '09