ENTRE A VIDA E O TEMPO
As sombras do Poente começavam a adensar-se sobre os morros da Chilena e encantadora Valparaiso. Não tardava que o sol tocasse a linha do horizonte nas águas do Pacífico.
Debruçado sobre si mesmo no banco do jardim, a curvatura da coluna a denunciar os noventa anos, Manuel Pinto da Fonseca garatuja com o indicador direito no chão arenoso. Ocorre-lhe a cena bíblica da mulher adultera, mas só de relance, porque o seu pensamento alargara-se instantes antes para o Pacífico, à distância. Aí sim, consome alguns momentos que está a sentir perturbadores. Desta cidade da Sul América onde se radicara há cinquenta e cinco anos, trazido por Mercedes, a mulher que o prendera com as mais fundas garras do chamamento amoroso, quando ainda no Rio de Janeiro, sente-se viajar em pensamento à sua distante Vila Chã no Portugal além Atlântico. Surpreende-se ao mesmo tempo que se sente acossado por um sentimento de culpa que de brando passa quase a perturbá-lo. Neste estranho dia que caminha para o fim tudo está a ser relâmpago na mente de Manuel Pinto da Fonseca, mas o que agora acontece, quando o sol se despede já, é vertigem. Nesta hora é a saudade que o apoquenta, estranha saudade que o deixou viver décadas sem interferir na sua vida de homem pintor tranquilo desta bela cidade Chilena. Os pensamentos atropelam-se assim como as motivações, mas a decisão de visitar o seu país, a sua terra natal, toma forma definitiva.
Ainda não é noite e está já decidido no seu íntimo. Não sabe ainda o carácter que tem esta decisão porque o que prevalece é um sentimento de saudade profunda pelos sítios, familiares e amigos. Será um deslumbre para si abraçar essa gente. Quando se levanta do banco e é quase noite, riscou já dos seus projectos a próxima estadia em Buenos Aires por razões económicas, homem que é habituado a não ter dinheiro por lhe encontrar sempre saída sobretudo nas viagens e nos bares da cidade, boémio. Está viúvo de Mercedes há cerca de vinte anos, mulher filha de pai Argentino e mãe Persa, em que se conciliava o encanto da mulher Muçulmana do Oriente Médio.
Dois meses decorridos sobre este fim de tarde não sonhado pelo lusitano pintor, já ele atravessa o Atlântico a caminho da sua Europa. Leva consigo muita ansiedade e o gozo antecipado de encontrar as pessoas e os sítios. No aeroporto de Pedras Rubras esperam-no os sobrinhos Feliciano e Célia que calorosamente o acolhem e que o transportam à Vila Chã de todos. Ao sair do carro junto à casa onde nasceu não conteve as lágrimas. Na muito modesta sala de estar onde se reuniu a família, não tardou que algo de estranho interferisse no seu ânimo. Ele sabe que todos sabiam que ele vinha e por isso pergunta num tom de quase exigência: O Chico, o Armando, a Amélia e a Deolinda, não sabiam que eu vinha? Um grande silêncio desce sobre a sala incluindo os mais jovens e Feliciano com algum constrangimento e acompanhando as palavras com um gesto de mãos informa o familiar chegado de longe: oh tio, eles já faleceram todos e o tio sabe que nós não tínhamos maneira de o contactar, que o senhor há mais de trinta anos que não dava noticias! Manuel Pinto da Fonseca estende o olhar para o exterior, estático e entregue a pensamentos fáceis de adivinhar e, vagarosamente apoiado na sua bengala, o charuto a cair-lhe do canto da boca, vem para o exterior e dá um pequeno passeio a pé nas imediações da casa. Nesta altura decide-se a na manhã do dia seguinte ir visitar os velhos amigos, ao Salgueiro, ao Burgo, ás Casas, Sta. Eulália etc. surpreende-se ao sentir nesta hora a amizade como qualquer coisa de primordial.
(Continua)