a casa velha amigo já não há
nem o cão dorme mais na soleira
deixei minha barba crescer
já não sou mais o menino que sonhava ser craque
da bola
desculpe desandei a beber e a fumar demais
dizem que tenho os olhos tristes
um pouco inchados pelo excesso de extravagâncias
coisas que eu não fazia
quando me pegavas com tuas mãos pesadas
que se tornavam leves sobre os meus ombros mirrados
e me levavas a passear pelo parque
perdão
tive amores alguns sumiram devolvendo as cartas onde menti amor eterno
outros que vieram com perdão nos lábios e mãos de acalanto partiram também
(é o destino das amadas
assim não fossem não seriam amadas
e eu já estava pronto pra vida quando enfim foste embora)
tenho um cigarro entre os dedos
enquanto escrevo-te estas linhas
no dia do teu aniversário
cada ano que passa fico um pouco mais órfão
e talvez mais próximo do meu dia de morrer
(órfão de mim mesmo - acabando com tudo como tentei uma vez)
mas ainda amo o futebol
e as pernas das vizinhas que já não pertencem mais ao bairro como eu com tantas mudanças
de cidades e casas
e a saudade de imaginá-las anteontem
mas elas envelheceram todas
e o anteontem não há mais
casaram tiveram filhos netos algumas já morreram
aquela que era ruiva menina dos meus sonhos no banheiro
hoje já é avó
(é pecado mulher envelhecer porque a imaginação dos homens também envelhece e a gente cai no ridículo: masturbação também tem limite não imagino mais coisas que não posso porque seria abusar do tempo, retroceder ao que morreu)
pela manhã mergulho minha cara no espelho
e vejo a barba cada dia mais branca
os olhos cada dia mais míopes
os meninos me chamam de senhor na rua
quando me perguntam as horas como se o relógio ainda me interessasse ou me desse perspectiva de um minuto a mais... que importa aos 53 anos? o dia seguinte o que é o dia seguinte amigo quando as casas funerárias estão cheias de dias seguintes?
mas eu só queria te dizer uma coisa
: já passarias dos oitenta hoje quando a manhã arrebenta
que falta me fazes
ganhei alguns prêmios no jornalismo e na literatura - coisas que nunca sonhei - mas que não me deixaram rico nem orgulhoso: num mundo injusto não se vive de prêmios e talvez hoje recuse a receber qualquer um que me queiram dar passei da idade
a casa não existe mais o cão morreu
eu menino não existo também a não ser nas loucuras que faço
a mãe envelhece a contar cada vez mais os dias
: passo às vezes uma semana sem vê-la
-coisas de uma cidade louca -
quando volto ela está um pouco mais velha
talvez seus fracos olhos façam confusão
e ela me pergunta com a voz cansada
"como vai a vida menino?"
mãe sabe como é não percebe que os filhos ficam velhos
por isto drummond estava certo: "Mãe não devia morrer." - também acho
em todo caso - feliz aniversário, pai!
(também passo a contar os meus dias
como se os meus ontens fossem sempre amanhã. ainda brinco de enganar a mim mesmo. um beijo,
j.)
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júlio
Júlio Saraiva